Miguel Pinto
Miguel Pinto
01 Mai, 2025 - 19:00

Annie: a epopeia da filha do chefe da PIDE que desertou para Cuba

Miguel Pinto

Diz-se que Annie Silva Pais se perdeu de amores pelo Che Guevara. Criou um valente sarilho diplomático, tendo em conta de quem era filha.

Annie Silva Pais
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A vida de Annie Silva Pais parece tirada da imaginação de um argumentista de cinema. Mas não é.

É a história verídica de uma mulher que largou uma vida faustosa e privilegiada por um amor impossível e por uma revolução com a qual, à partida, nada teria a ver.

Aqui cruzam-se a revolução cubana, Che Guevara, o Estado Novo português e um valente embaraço diplomático, que se tentou abafar o mais possível.

Afinal, Annie era a filha única de Fernando Silva Pais, o temido e poderoso diretor-geral da então polícia política portuguesa, a PIDE, e casada com um respeitado diplomata suíço. Ingredientes mais do que suficientes para um livro de ação e espionagem.

Annie Silva Pais: nascida em berço de ouro

Nascida em Lisboa a 1 de dezembro de 1935 e batizada com o nome de Ana Maria Palhota da Silva Pais, acabou por ficar conhecida pelo petit nom de Annie.

A sua família pertencia à classe média-alta, pelo que passou toda a sua juventude longe das questões que assolavam politicamente o Portugal de então. Movia-se na alta sociedade, frequentava as festas e estava destinada a uma vida despreocupada e plena de conforto.

Com efeito, assim foi durante muito tempo. Annie era a filha de Fernando Silva Pais, que se viria a tornar no diretor-geral da temida polícia política do regime de António Oliveira Salazar, a PIDE.

O pai, com acesso privilegiado às mais altas esferas do poder, representava algo que Annie haveria de combater durante grande parte da sua vida. Mas já lá vamos.

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Com este berço, nada mais natural que viesse a casar em conformidade. E assim fez, desposando o diplomata suíço Raymond Quendoz. Tudo normal, tudo perfeito, tudo o que se esperava de Annie.

No entanto, a vida de diplomata obriga a algum espírito de saltimbanco e Raymond Quendoz acabou colocado em Cuba, país onde chegou em 1962, acompanhado pela mulher. Nada mais seria igual.

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No meio da revolução

Cuba vivia a euforia da revolução. Os guerrilheiros da Sierra Maestra tinham ocupado o poder e o detestado Fulgêncio Batista já estava longe, no exílio. Annie viu-se submergida por toda a agitação que se vivia em Havana, tomou contacto com as teorias revolucionárias e, a pouco e pouco, foi mudando a sua percepção da realidade.

Como mulher de um diplomata, frequentava cerimónias e recepções onde os principais rostos da revolução cubana marcavam presença. Fidel Castro, obviamente, mas em especial Ernesto ‘Che’ Guevara, a quem Annie é apresentada e que elogia o vestido da bela portuguesa.

Consta que terá sido aí que Annie foi acometida por uma fulminante paixão pelo guerrilheiro de origem argentina, algo que iria formatar todo o seu futuro.

Assim, a vida de Annie Silva Pais dá uma volta de 180 graus, começando a avolumar-se os problemas no casamento com o diplomata suíço.

Até que após uma viagem ao México para alegadamente visitar uma amiga, Annie não sai do avião em Cuba, onde a esperava o marido, acabando por abandonar o aeroporto no carro do médico de Fidel Castro. No fundo, desertava.

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annie silva pais: crise diplomática

Iniciou-se então uma nervosa crise política, com receios de que Annie Silva Pais tivesse transmitido segredos diplomáticos aos dirigentes cubanos (algo que nunca se comprovou) e o marido Raymond Quendoz a ser chamado de volta à Suíça onde seria interrogado de todas as formas e feitios.

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Contudo, o epicentro da crise mudava-se para Lisboa. Fernando Silva Pais, o chefe da PIDE portuguesa, não queria acreditar no que ouvia e colocou o caso a Salazar, apresentando mesmo a sua demissão do cargo que ocupava.

Não foi aceite e Fernando, em conjunto com a mulher Armanda, procuraram, através dos canais diplomáticos, perceber o que se tinha passado com a sua preciosa filha única.

O que se tinha passado com a Annie Silva Pais é que tinha mergulhado na revolução cubana. Motivada por uma paixão platónica, mas avassaladora, por Che Guevara, começa a colaborar com os Comités de Defesa da Revolução.

Tornou-se uma revolucionária obsessiva e ia, aos poucos, cortando grande parte dos laços com Portugal e com a família.

25 de abril em Portugal

Entretanto, Portugal dava passos na direção da sua própria revolução, que acontece a 25 de abril de 1974. Fernando Silva Pais, ainda o chefe da PIDE, é um dos alvos a abater e acaba detido, acusado, entre outros crimes, do assassinato do General Humberto Delgado, processo ao qual não sobreviverá. Morre antes de ser emanada uma sentença.

Annie Silva Pais vem a Portugal, em 1975, mas para desgosto e choque da mãe, simpatiza com a revolução portuguesa e não condena os homens que tentam julgar o progenitor.

Trabalha ativamente na revolução portuguesa, como tradutora, e ainda terá tentado mover algumas influências para que o pai fosse libertado. Mas acaba por regressar à sua amada Cuba.

Cancro fatal

Foi trabalhar para a Equipa de Serviços de Tradutores e Intérpretes do regime cubano, até que em 1988 necessitou de uma operação de urgência a um nódulo na mama.

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Ainda viajou mundo fora, ao serviço de Cuba, mas o cancro acabaria por levar de vencida a revolucionária Annie Silva Pais. Morreu a 13 de julho de 1989, sendo sepultada numa campa anónima num cemitério cubano.

Annie Silva Pais teve tudo, de tudo abdicou e viveu uma vida com que muita gente apenas sonha. Mais do que a paixão pelo Che Guevera, rendeu-se de forma incondicional aos ideais da revolução. Ideais esses a que ficaria fiel até ao fim. Hasta la vitoria, siempre, diria ela.

Fontes

A Filha Rebelde – José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz (Temas & Debates)

Annie, uma portuguesa na revolução cubana – José Fernandes Fafe (D. Quixote)

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