Share the post "Acidente ou atentado? A dúvida resiste 44 anos após Camarate"
Para uma fatia considerável da população portuguesa, Camarate pouco ou nada dirá. Quando muito é identificado com uma zona da Grande Lisboa, mais concretamente em Loures, muitas das vezes nos noticiários pelas piores razões.
Contudo, para outra franja da população, a simples menção da palavra Camarate transporta-os para o dia 4 de dezembro de 1980 e para a queda de um avião (um Cessna) que transportava, entre outros, o então primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro, e o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa.
Há precisamente 44 anos, iniciava-se uma longa discussão, que chegou até aos nossos dias, e que sucessivas investigações periciais não conseguiram esclarecer cabalmente.
Camarate foi um acidente ou houve mão criminosa na queda do aparelho que transportava dois dos mais importantes políticos portugueses da altura?
Camarate: a dúvida que permanece
Os que defendem a tese de que de facto se tratou de um acidente criticam a quixotesca quimera daqueles que alvitram ainda tratar-se de um atentado. Os que juram a pés juntos ter sido um crime, contestam a passividade dos que, mesmo perante algumas evidências, continuam a achar tratar-se de um azar. Ninguém se entende.
Por isso, Camarate é que como que a nossa Dallas, a cidade americana onde foi assassinado JFK. Ainda hoje os americanos discutem se foi obra de um atirador solitário ou se existiu uma conspiração envolvendo terceiros. No pequenino Portugal de Camarate também muito se opina e pouco ainda se sabe.
Período conturbado
Para contextualizar os acontecimentos de Camarate, é preciso perceber que Portugal estava ainda na ressaca da revolução de 25 de abril de 1974. Foram anos de sucessivos governos (provisórios e constitucionais) e de muita instabilidade política.
Na tentativa de colocar um ponto final na confusão, o PSD, de Francisco Sá Carneiro, alia-se ao CDS, de Diogo Freitas do Amaral, e ao Partido Popular Monárquico, liderado por Gonçalo Ribeiro Telles.
Estava assim formada, em 1979, a Aliança Democrática, coligação que viria a vencer as eleições legislativas com maioria absoluta.
No entanto, para Sá Carneiro, a maioria no Parlamento não era suficiente. Era preciso fazer eleger um Presidente da República que não fosse um obstáculo à ação governativa.
A escolha recaiu sobre Soares Carneiro, um general, que se iria confrontar com o então Chefe de Estado, Ramalho Eanes. Esta polarização da vida política portuguesa acentuou-se ao longo de todo o ano de 1980, sendo que as eleições presidenciais estavam marcadas para 7 de dezembro.
Instabilidade internacional
Em termos internacionais, a situação também era volátil. A então União Soviética tinha acabado de invadir o Afeganistão, Margaret Thatcher ascende ao poder no Reino Unido e inicia uma conjunto de reformas que vão deixar marcas profundas no país e a revolução islâmica do ayatollah Komeiny triunfa no Irão, levando a um ataque à embaixada americana em Teerão e o aprisionamento de todo o pessoal.
Com Jimmy Carter prestes a deixar a Casa Branca, seria sucedido por Ronald Reagan, a crise dos reféns americanos arrasta-se por todo o ano de 1980. Acabam por ser libertados a 20 de janeiro de 1981, precisamente no dia da tomada de posse de Reagan.
É para aqui que confluem algumas pistas do que poderá ter acontecido em Camarate, designadamente no papel que Portugal teria neste conflito no que diz respeito ao tráfico de armas. Nunca nada se provou, mas também nada se desmentiu de forma cabal.
Camarate: 26 segundos até à queda
Na noite de 4 de dezembro de 1980, o avião iria transportar os passageiros até ao Porto, onde decorreria um dos principais comícios da campanha de Soares Carneiro para as eleições presidenciais.
A bordo, estavam o primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, a sua companheira, Snu Abecassis, o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, a sua mulher, Manuela Amaro da Costa,o chefe de gabinete de Sá Carneiro, António Patrício Gouveia, e os dois pilotos da aeronave.
O avião fez-se à pista às primeiras horas da noite, despenhando-se, segundo alguns cálculos, 26 segundo depois de levantar voo. Caiu no Bairro das Fontainhas, em Camarate, quase paredes-meias com o Aeroporto da Portela.
Ninguém sobreviveu à tragédia, iniciando-se, quase de imediato, uma investigação ao sucedido (afinal, tinha morrido o primeiro-ministro). As explicações divergentes começaram rapidamente a circular.
Comissões de inquérito
Foram constituídas, ao longo dos anos, várias comissões de inquérito, ouviram-se dezenas, se não centenas, de peritos e testemunhas. Contudo, nunca ninguém chegou a um consenso sólido o suficiente para apresentar aos portugueses uma verdade irrefutável.
O relatório preliminar da X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia do Camarate, a última a ser constituída, reafirma a tese de atentado e aponta “lacunas” à atuação da Polícia Judiciária e da Procuradoria-Geral da República. “A queda do avião em Camarate, na noite de 4 de dezembro, deveu-se a um atentado“, lê-se nas conclusões finais do texto.
No entanto, se foi um atentado nunca ninguém foi levado à justiça para responder pelo crime. Se foi um acidente, também continua sem se saber ao certo o que aconteceu para motivar a queda do Cessna em Camarate.
Assim, a única coisa que se sabe com toda a certeza é que a 4 de dezembro de 1980 o primeiro-ministro de Portugal morria na queda de um avião. Nunca antes tinha acontecido, e jamais voltaria a acontecer algo parecido.
Snu e a vida privada com Sá Carneiro – Cândida Pinto, D. Quixote
O crime de Camarate – Ricardo Sá Fernandes, Bertrand Editora