Share the post "“Solidão e falta de visitas cria ansiedade em doentes e famílias”"
Nuno Melo, médico de medicina interna, no Hospital de São João, no Porto é um dos muitos rostos que tem estado na frente de combate à COVID-19. Nesta entrevista ao Ekonomista, fala do seu trabalho com doentes afetados por esta patologia.
Lidar com uma doença para a qual ainda não existe tratamento específico, é para o profissional de saúde uma situação frustrante. Difícil é também observar a angústia dos doentes internados e das suas famílias, devido à suspensão de visitas. No entanto, Nuno Melo garante que há um esforço enorme de todos os profissionais para mitigar essa ausência.
Covid-19: médicos lidam com fatores de stress
Ekonomista: Como está a situação no seu hospital no que respeita ao número de doentes COVID-19?
Nuno Melo: Tem havido uma diminuição consistente do número de casos, quer diagnósticos de novo, quer doentes internados. A afluência à urgência de doentes suspeitos tem diminuído consideravelmente e o número de novos internamentos também.
EK: Como é que os doentes reagem ao receber o diagnóstico positivo?
NM: Nota-se apreensão, sobretudo nos doentes que ficam internados. Nos restantes, há a preocupação de garantir que não infetam outras pessoas.
EK: Sente que os doentes ficam mais assustados quando confrontados com o diagnóstico, mesmo aqueles que são considerados de baixo risco, pelo facto de estarmos a falar de uma pandemia retratada intensamente pelos meios de comunicação social?
NM: Se numa fase inicial se notava alguma desvalorização da doença em si, atualmente nota-se maior preocupação e isso, provavelmente, será decorrente da extensa cobertura mediática e dos exemplos próximos de Itália e Espanha. Nestes países, a pandemia levou ao esgotamento da capacidade de internamento em unidades de Cuidados Intensivos, o que reflete a potencial gravidade da doença.
EK: Quais são os maiores receios dos seus pacientes com COVID-19?
NM: Naqueles com doença leve, e que não são internados é sobretudo a possibilidade de infetarem outras pessoas. Nos que ficam internados, a solidão e ausência de visitas é um fator de ansiedade para doentes e famílias. Para além disso, o facto de lidarmos com uma doença nova em que desconhecemos muitas das suas facetas e a forma como evolui, faz com que não tenhamos muitas respostas a dar às perguntas deles e isso é um fator de stress adicional.
Se numa fase inicial se notava alguma desvalorização da doença em si, atualmente nota-se maior preocupação e isso, provavelmente, será decorrente da extensa cobertura mediática e dos exemplos próximos
EK: Quais são as perguntas que os seus pacientes mais lhe fazem?
NM: Os cuidados que têm que ter: se devem usar luvas, que produtos devem usar para limpar a casa, se devem ou não usar máscara e qual o risco de virem a ter doença grave.
EK: Os doentes que recebem indicação de ir para casa, aceitam de bom grado essa condição? Não se sentem de alguma forma desprotegidos pelo SNS?
NM: No hospital onde trabalho há uma equipa que segue estes doentes com chamadas periódicas e isso é explicado aos doentes no momento da alta, motivo pelo qual não notei essa insegurança.
EK: Quais são os sintomas que clinicamente mais o preocupam no doente com COVID-19?
NM: A febre persistente e a falta de ar e cansaço.
EK: Recentemente, veio a público que os doentes covid apresentam muitas vezes hipóxia silenciosa. Os doentes que são mandados para casa fazem controlo da febre e dos níveis de oxigénio? Não deveriam todos os doentes e suspeitos em situação de quarentena, ter um termómetro e oxímetro de dedo, em casa, para detetar o mais precocemente os sintomas da COVID -19?
NM: Aquilo que existe é uma dissociação entre a gravidade da hipoxemia (ou seja, a baixa concentração de oxigénio no sangue) e a clínica, ou seja, os doentes apresentam-se com frequências respiratórias altas, mas sem sensação de falta de ar. Eventualmente, acabam por sentir cansaço e esse acaba por ser um motivo relativamente comum de recurso à urgência.
Relativamente ao termómetro, todos os doentes devem ter termómetro em casa para fazer vigilância da temperatura e isso é uma das perguntas que é feita antes de terem alta. Quanto ao oxímetro, penso que pode ser um motivo adicional de ansiedade (não são raras as vezes em que dão valores de saturação erradamente baixos) pelo que não me parece que seja necessário, pelo menos de forma generalizada. Em casos pontuais pode ser útil.
Para aqueles que não conseguem falar com a família nota-se a angústia quer de doentes, quer da própria família. Há um esforço de todos os profissionais para mitigar esta ausência
EK: Os doentes internados têm algum contacto com a família?
NM: Os doentes mais jovens que têm telemóvel, mantêm consigo o aparelho durante o internamento. Nos doentes mais idosos ou com internamentos prolongados tenta-se fazer chamadas e/ou videochamadas na medida do possível. Nos doentes em fim de vida são permitidas as visitas.
EK: Como é que os pacientes lidam com o facto de não poderem receber visitas dos seus familiares?
NM: Para aqueles que não conseguem falar com a família nota-se uma angústia, quer de doentes, quer da própria família. Há um esforço de todos os profissionais para mitigar esta ausência e há uma equipa de psicólogos que vai mantendo contacto com os doentes internados também para ajudar nesta vertente.
EK: Como é lidar com o stress de querer responder às necessidades dos doentes covid e, simultaneamente, não ter capacidade para o fazer por não existirem ainda medicamentos específicos para tratamento desta infeção?
NM: É frustrante, tal e qual como em muitas outras doenças em que não existem tratamentos específicos. Aquilo que nos compete a nós médicos é tentar otimizar todas as variáveis passíveis de serem otimizadas. E claro, estudar tudo o que se vai produzindo em termos científicos para estarmos sempre atualizados e assim podermos tratar o melhor possível dos doentes.
EK: Já há pelo menos 2100 profissionais de saúde infetados com COVID-19 em Portugal. Há casos no seu hospital? Como lidam com esta realidade?
NM: Sim, há vários profissionais infetados. Felizmente nenhum caso grave e alguns já curados e que já regressaram ao trabalho. No meu caso tento minimizar ao máximo o risco de infeção, com lavagem frequente das mãos, etiqueta respiratória e a utilização adequada dos equipamentos de proteção individual.
EK: Como é no seu local de trabalho o acesso aos equipamentos de proteção individual?
NM: Os profissionais que trabalham nas áreas dedicadas aos doentes infetados por SARS-COV2, tem tido acesso aos EPI, apenas nos sendo pedida uma utilização responsável e com o menor desperdício possível. As cogulas e os cobre-botas são o material que mais escasseia e por vezes temos de adaptar algumas soluções para termos uma proteção completa. Os respiradores que tínhamos inicialmente eram de melhor qualidade e faziam uma selagem melhor, ainda que com alguma criatividade se consiga o mesmo efeito com os novos respiradores.
EK: Usar o equipamento de proteção individual aumenta a dificuldade técnica das intervenções médicas necessárias? E receberam formação para fazer face a essas dificuldades?
NM: Recebemos formação para vestir e despir o equipamento de proteção individual. É verdade que se perde alguma destreza para alguns gestos técnicos e que se demora mais algum tempo a realizá-los, mas, como tudo, acaba por ser uma questão de hábito.
EK: O que é que o Nuno Melo, e os seus colegas em geral, sentem com as manifestações públicas de apreço aos profissionais de saúde?
NM: Para nós é gratificante, ainda por cima depois dos vários episódios de violência que se registaram contra as várias classes profissionais nos últimos meses. Esta pandemia veio dar maior visibilidade ao trabalho que os profissionais de saúde levam a cabo diariamente. Espero que sirva também para dar o devido reconhecimento aos médicos internos que, contrariamente ao que por vezes se diz, não são meros estagiários, constituindo uma importante força de trabalho. São eles que compõem a maioria das equipas que têm tratado dos doentes com COVID-19 na maioria dos hospitais.