Isadora Freitas
Isadora Freitas
30 Out, 2017 - 09:20

Postais do Camboja: devaneios junto à água

Isadora Freitas

Menina do mar desde que me lembro, não sei estar muito tempo sem procurar conforto na água. Esta semana, pedalei junto ao rio e fui conhecer a vida no lago.

Postais do Camboja: devaneios junto à água

Querida S.,

Escrevo-te este postal em jeito de agradecimento. Sem ti, não teria conseguido concretizar o sonho de pequena de escrever sobre os meus devaneios cá fora.

Esta semana, depois de terminar as aulas da manhã com as crianças, fui até Chong Kneas, uma aldeia flutuante a poucos quilómetros de Siem Reap. Sinto que ainda não consegui encontrar as palavras certas para descrever o que vi. É um cenário surrealista e não o digo num sentido estimulante.

As pessoas destas casas sobre a água vivem do que o Tonle Sap, o lago, lhes dá. Vivem do peixe que pescam. Vivem com pouco, muito pouco, e, todos os dias, vêem dezenas e dezenas de turistas com telemóveis nas mãos e óculos de indiferença postos a invadir o seu espaço. A explorar o seu quotidiano de trabalho árduo ao sol.

A viagem de tuk-tuk e barco custa à volta de 20 dólares, o que é muito para o Camboja, e seria justo se algum desse dinheiro revertesse para estas pessoas, a que tanto gostamos de tirar fotografias. Mas não. Não reverte. E não é justo.

Viajar também é isto: perceber que há limites. Que nem tudo é para ser visto. Que nem tudo é aceitável. É aqui que sinto o meu bichinho de jornalista e defensor dos direitos humanos falar alto, muito alto.

Sou apologista de que todos temos direito a formar uma opinião, a saber do que falamos, mas, desta vez, se me perguntarem se vale a pena visitar esta aldeia no meio do lago, direi que não. Direi que uma viagem de barco àquele mundo serve apenas para perpetuar a exploração daquelas pessoas. Famílias inteiras de Cambojanos e Vietnamitas que têm de transportar as suas casas quando o nível da água muda; que não têm canalização ou água potável à distância de uma torneira.

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Saí de lá com o coração pequenino e com um imenso peso na Alma. Via-se bem nos meus olhos que não tinha ficado feliz e, por isso, o condutor de tuk-tuk quis levar-nos a conhecer uma plantação de flores de lótus, para nos “devolver o sorriso”, disse ele.

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Provámos o fruto, que é diferente mas saboroso, e passeámos pelos campos quando o sol já se preparava para se esconder. Não me devolveu o sorriso por completo, é certo, mas ajudou. Regressei a casa para a aula com os meus três alunos e fiz todas as perguntas que me assolavam. É bom ter locais com quem partilhar todas as dúvidas.

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Já comprei uma bicicleta e é assim que me movo todos os dias. De casa para a escola, pelo centro da cidade e ao longo do rio, onde há quem pesque e quem nade. É uma aventura constante pedalar por entre este trânsito sem regras mas, acredita, é uma aventura que adoro.

Os meus não-dotes de condutora são, aqui, uma excelente vantagem e, até agora, nunca me vi em situações complicadas (como tantas vezes acontecia em Portugal).

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Espero que, com este desabafo de hoje, não penses que não estou feliz. Estou, de verdade. Encontrei aqui uma liberdade diferente, onde falar com a pessoa que se senta ao meu lado num café ou está à minha frente na fila do supermercado é a coisa natural a fazer. Onde me levam de mota a conhecer lugares remotos de paisagens maravilhosas para lá de Siem Reap. Onde os miúdos ficam tão contentes por me lembrar dos seus nomes que me oferecem desenhos e me dão abraços. Estou feliz também por poder partilhar esta felicidade.

Espero que estejas bem, S., e que saibas que gostaria muito de te receber neste cantinho, como já o fiz em outras paragens. Sei que ias ficar feliz ao perderes-te por estas ruas tão cheias de tudo. Sei que íamos perder-nos juntas pelas bancas de roupas coloridas e com as imensas delícias gastronómicas que aqui existem.

Um abraço imenso e até já, de pacote de açúcar na mão.

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