Querida S.,
Escrevo-te este postal em jeito de agradecimento. Sem ti, não teria conseguido concretizar o sonho de pequena de escrever sobre os meus devaneios cá fora.
Esta semana, depois de terminar as aulas da manhã com as crianças, fui até Chong Kneas, uma aldeia flutuante a poucos quilómetros de Siem Reap. Sinto que ainda não consegui encontrar as palavras certas para descrever o que vi. É um cenário surrealista e não o digo num sentido estimulante.
As pessoas destas casas sobre a água vivem do que o Tonle Sap, o lago, lhes dá. Vivem do peixe que pescam. Vivem com pouco, muito pouco, e, todos os dias, vêem dezenas e dezenas de turistas com telemóveis nas mãos e óculos de indiferença postos a invadir o seu espaço. A explorar o seu quotidiano de trabalho árduo ao sol.
A viagem de tuk-tuk e barco custa à volta de 20 dólares, o que é muito para o Camboja, e seria justo se algum desse dinheiro revertesse para estas pessoas, a que tanto gostamos de tirar fotografias. Mas não. Não reverte. E não é justo.
Viajar também é isto: perceber que há limites. Que nem tudo é para ser visto. Que nem tudo é aceitável. É aqui que sinto o meu bichinho de jornalista e defensor dos direitos humanos falar alto, muito alto.
Sou apologista de que todos temos direito a formar uma opinião, a saber do que falamos, mas, desta vez, se me perguntarem se vale a pena visitar esta aldeia no meio do lago, direi que não. Direi que uma viagem de barco àquele mundo serve apenas para perpetuar a exploração daquelas pessoas. Famílias inteiras de Cambojanos e Vietnamitas que têm de transportar as suas casas quando o nível da água muda; que não têm canalização ou água potável à distância de uma torneira.
Saí de lá com o coração pequenino e com um imenso peso na Alma. Via-se bem nos meus olhos que não tinha ficado feliz e, por isso, o condutor de tuk-tuk quis levar-nos a conhecer uma plantação de flores de lótus, para nos “devolver o sorriso”, disse ele.
Provámos o fruto, que é diferente mas saboroso, e passeámos pelos campos quando o sol já se preparava para se esconder. Não me devolveu o sorriso por completo, é certo, mas ajudou. Regressei a casa para a aula com os meus três alunos e fiz todas as perguntas que me assolavam. É bom ter locais com quem partilhar todas as dúvidas.
Já comprei uma bicicleta e é assim que me movo todos os dias. De casa para a escola, pelo centro da cidade e ao longo do rio, onde há quem pesque e quem nade. É uma aventura constante pedalar por entre este trânsito sem regras mas, acredita, é uma aventura que adoro.
Os meus não-dotes de condutora são, aqui, uma excelente vantagem e, até agora, nunca me vi em situações complicadas (como tantas vezes acontecia em Portugal).
Espero que, com este desabafo de hoje, não penses que não estou feliz. Estou, de verdade. Encontrei aqui uma liberdade diferente, onde falar com a pessoa que se senta ao meu lado num café ou está à minha frente na fila do supermercado é a coisa natural a fazer. Onde me levam de mota a conhecer lugares remotos de paisagens maravilhosas para lá de Siem Reap. Onde os miúdos ficam tão contentes por me lembrar dos seus nomes que me oferecem desenhos e me dão abraços. Estou feliz também por poder partilhar esta felicidade.
Espero que estejas bem, S., e que saibas que gostaria muito de te receber neste cantinho, como já o fiz em outras paragens. Sei que ias ficar feliz ao perderes-te por estas ruas tão cheias de tudo. Sei que íamos perder-nos juntas pelas bancas de roupas coloridas e com as imensas delícias gastronómicas que aqui existem.
Um abraço imenso e até já, de pacote de açúcar na mão.
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