O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, falou ao Ekonomista sobre a importância dos equipamentos de proteção individual, nesta fase da pandemia de COVID-19.
Garante que os portugueses podem confiar no sistema de saúde e adverte para o facto de os doentes não poderem deixar de recorrer ao serviço de urgência, por terem medo de ficar infetados.
Nesta entrevista, explica ainda as diferenças entre as máscaras comunitárias e as máscaras cirúrgicas, fala sobre as dificuldades que enfrentam os profissionais que estão na linha da frente e da necessidade de criar o movimento “Todos Por Quem Cuida”.
ordem dos médicos: máscaras protegem
Ekonomista: A Direção-Geral da Saúde (DGS) fez, recentemente, recomendações sobre a utilização de máscaras a vários níveis. Qual a sua opinião sobre essa recomendação?
Miguel Guimarães: As recomendações da DGS resultam, na prática, daquilo já foi antecipado pelo movimento “Máscara para todos”. Este movimento defende o uso generalizado de máscaras e conta com o apoio de cidadãos e de algumas instituições públicas, como é o caso das escolas médicas, da Ordem dos Médicos e até do Sindicato Independente dos Médicos.
A utilização da máscara comunitária em espaços públicos é, de facto, muito importante para que possamos passar à fase seguinte da evolução desta pandemia, que é a questão da saúde dos doentes não COVID.
EK: O que se entende por máscaras comunitárias?
MG: As máscaras comunitárias, segundo as regras que são emanadas pelo Infarmed, e também pelas regras internacionais, são máscaras de algodão, com duas, três ou quatro camadas de algodão, ou de poliéster. São máscaras que podem ser produzidas em massa pela nossa indústria têxtil. Há mais de 200 empresas que estão, neste momento, a produzir máscaras em massa. O Infarmed acabou por empatar um bocado o início desta iniciativa.
Mas a verdade é que quando estou com uma máscara comunitária, estou com uma proteção muito semelhante àquilo que é uma máscara cirúrgica. Se eu estiver a usar máscara, estou a proteger a pessoa que está à minha frente e se a pessoa que está à minha frente também estiver a utilizar uma máscara, está a proteger-me a mim. Portanto, estas máscaras permitem que nos protejamos uns aos outros.
EK: E no que respeita aos equipamentos de proteção individual?
MG: Os EPI (Equipamentos de Proteção Individual) devem ser usados não só por todos os profissionais de saúde que trabalham nos hospitais, centros de saúde ou farmácias, mas também pelos bombeiros, forças de segurança e pelos cuidadores, que têm feito um trabalho extraordinário.
Esta proteção adicional, para além das regras da Direção Geral da Saúde, que é o distanciamento social, manter a etiqueta respiratória e a lavagem frequente das mãos, será fundamental para o retorno a alguma atividade. E isso, seguramente, vai começar a acontecer este mês e vai acontecer, de forma mais marcada, no mês de maio.
Ek: Há condições para se começar a reabrir o país?
MG: Segundo as palavras do primeiro-ministro, queremos em breve pôr a indústria a funcionar, abrir para o pequeno comércio, reabrir escolas e creches. Se queremos isto tudo, precisamos de algumas regras que ainda estão por definir e que são importantes. Se as pessoas começarem a utilizar sempre as máscaras comunitárias, a probabilidade de transmitirmos a infeção de pessoa para pessoa, baixa claramente. Isso é um objetivo que, neste momento, é essencial. É pena que a Direcção-Geral da Saúde tenha adotado tão tardiamente esta medida.
A utilização generalizada das máscaras foi adotada por muitos países do Oriente, nomeadamente, Singapura, Macau, Taiwan, Coreia do Sul e pela própria China. Mas esta medida também foi posta em prática, logo desde o início, por países europeus, como a República Checa e a repercussão que teve na contenção da infeção foi enorme. Todos os indicadores da República Checa são melhores do que os de Portugal, e isso deve-se não particularmente às medidas de contenção, mas ao facto de, desde o início, toda a gente andar com máscaras comunitárias.
As máscaras cirúrgicas são eficazes durante cerca de quatro horas, porque vão perdendo eficácia à medida que vão ficando húmidas. Isto acontece com qualquer pessoa que usa uma máscara.
EK: Há ainda alguma confusão relativamente às diferenças entre as máscaras cirúrgicas e as máscaras comunitárias. Idealmente não deveríamos usar todos mascaras cirúrgicas?
MG: Essa é uma boa pergunta. As máscaras cirúrgicas, pela sua composição, dão uma proteção à volta de 85%. Estamos a falar das verdadeiras máscaras cirúrgicas, porque há por aí máscaras cirúrgicas que não têm exatamente a mesma composição e que as pessoas compram indiscriminadamente. Para além disso, têm uma duração de ação, ou seja, são eficazes durante cerca de quatro horas, porque vão perdendo eficácia à medida que vão ficando húmidas. Isto acontece com qualquer pessoa que usa uma máscara. É impossível evitar isto. Portanto, são máscaras de utilização única e que ao fim ao fim de algum tempo devem ser mudadas.
As máscaras comunitárias, cumprindo os critérios que foram dados pelo Infarmed, dão uma proteção semelhante às máscaras cirúrgicas, sobretudo aquelas que forem feitas com, pelo menos, três camadas de algodão. As máscaras comunitárias têm outra vantagem: são reutilizáveis. Mas, as pessoas têm de saber, exatamente, como colocar e retirar a máscara. Também a lavagem dessas máscaras deve obedecer a determinados critérios para que elas fiquem completamente descontaminadas, porque o vírus não se vê. Isto significa, na prática, que uma pessoa pode ter uma máscara que dá para usar durante uma ou duas semanas, desde que vá tendo todos os cuidados com ela e a vá lavando de forma eficaz.
EK: Já as máscaras cirúrgicas obrigam então a outros cuidados.
MG: Completamente. As máscaras cirúrgicas não se reutilizam. Vai-se ao supermercado, usa-se e depois não dá para a recuperar, não dá para a lavar. Mesmo que só se use durante uma hora, vai para o lixo e é preciso usar outra quando se voltar a sair. Portanto, há aqui uma diferença muito grande que recomenda que as pessoas utilizem máscaras comunitárias.
Se as pessoas usarem máscaras cirúrgicas também estão protegidas, mas a verdade é que têm de mudar várias vezes de máscara. Porque o que não pode acontecer, para quem usa máscaras cirúrgicas, é sair para fazer umas compras, chegar a casa, dobrar e guardar a máscara direitinha. Não. Por isso é que eu digo, para os cidadãos normais, naquilo que são as nossas atividades normais, podemos perfeitamente usar uma máscara comunitária, que estão já, de alguma forma, certificadas pelo Infarmed.
“desempenho dos serviços de saúde é excelente”
EK: Como acha que Portugal esta a reagir a esta pandemia em comparação com outros países, nomeadamente os europeus?
MG: É difícil compararmos países, porque têm diversas formas de abordar estas questões. Por exemplo, Itália e Espanha, demoraram demasiado tempo a adotar medidas restritivas. Há também variações geográficas, em termos de número de infetados e de mortes, dentro dos países. Há populações muito diversas, países que têm diferentes patologias na própria sociedade, países que têm populações mais envelhecidas ou que têm uma carga de doença crónica maior. Por tudo isto, é sempre difícil comparar.
Ainda assim, respondendo à sua pergunta, Portugal tem tido um comportamento que eu acho que é bom. Os países que lidaram pior com esta crise, no caso concreto da Europa, foram a Espanha, a Itália e o Reino Unido, claramente. Portugal não é sequer comparável com estes países. Relativamente aos outros países da Europa, há dois exemplos de países que têm populações semelhantes à nossa, a Bélgica e a República Checa. A Bélgica está a lidar com esta situação muito pior do que Portugal, mas a República Checa, está a lidar de forma muito melhor.
EK: E a resposta dos serviços de saúde?
MG: Isso é que é importante. Independentemente do número de pessoas infetadas que temos, ou até da taxa de mortalidade, Portugal tem tido um excelente desempenho a nível da capacidade de resposta do serviço de saúde, ou seja, o serviço de saúde tem respondido de uma forma positiva e eficaz àquilo que são as necessidades dos doentes. Estamos a conseguir dar resposta aos doentes que estão internados e, sobretudo, àqueles que estão em cuidados intensivos, sem ter a necessidade de fazer aquilo que aconteceu noutros países, nomeadamente em Espanha e Itália, em que se tinha que decidir que doentes podiam entrar em cuidados intensivos, por falta de camas, por falta de ventiladores, por falta, no fundo, de cuidados intensivos. Portanto, Portugal tem uma nota positiva.
É preciso dizer às pessoas que podem ir ao serviço de urgência, porque não vão apanhar a infeção, que podem ir às consultas e podem fazer exames em absoluta segurança
EK: A Ordem dos Médicos, em conjunto com a Ordem dos Farmacêuticos, lançou o movimento #TodosPorQuemCuida. Quer explicar o que é esse movimento e porquê a necessidade de o lançar?
MG: Temos muitas dificuldades em Portugal. Contrariamente àquilo que tem sido dito pelo governo, a falta de equipamentos de proteção individual existiu desde o início e continua a existir. E a prova disso é que a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos e outras ordens profissionais, como é o caso dos enfermeiros, têm recebido muitos pedidos de ajuda, seja de farmácias, de centros de saúde, de hospitais, mas também de outros profissionais que estão, neste momento, a cuidar de nós, nomeadamente os bombeiros, as forças de segurança, as autoridades judiciárias os cuidadores, os lares.
Temos tido pedidos de todas as formas e feitios. O que significa que existe de facto uma dificuldade no acesso a equipamentos de proteção individual. Eu diria que a situação, nos últimos dias, melhorou um bocado relativamente ao início, que foi uma desgraça. Atualmente, embora existam hospitais e centros de saúde que dispõem de equipamentos de proteção individual para enfermeiros e médicos, há outros que têm dificuldades e onde os seus profissionais estão apenas parcialmente equipados.
EK: De que forma podemos ajudar a iniciativa #TodosPorQuemCuida?
MG: O movimento conta solidária #TodosPorQuemCuida que é liderado pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticos, e que tem o apoio da Apifarma e de outras instituições da sociedade civil, é um movimento para ajudar. Ou seja, para ajudar o Estado a que os equipamentos de proteção cheguem a todos os profissionais. Porque é o contributo que, neste momento, podemos dar. Temos no nosso site a possibilidade de as pessoas darem o seu contributo na conta, mas também a possibilidade de as pessoas pedirem e doarem equipamento.
Se alguma empresa quiser, por exemplo, doar 20 mil, ou 100 mil máscaras, viseiras, ou o que for, pode fazê-lo. Pretendemos funcionar como um complemento para aquilo que o Estado já vai fazendo. Queremos fazer chegar aos sítios que têm mais dificuldade equipamentos que possam ajudar a proteger os profissionais, porque isso ajuda-nos a proteger todos os nossos doentes.
EK: Há muitos profissionais de saúde infetados?
MG: Já existem mais de 2100 profissionais de saúde infetados. É um número considerável, mas se continuar a crescer é evidente que vamos começar a perder alguma capacidade de resposta, no que diz respeito aos recursos médicos. É isso que não queremos que aconteça. Queremos que os nossos profissionais se sintam protegidos, para que possam trabalhar nas condições adequadas e enfrentar esta batalha. Só assim Portugal vai poder continuar a dar uma resposta muito satisfatória às necessidades da nossa população.
EK: Os tempos modernos trouxeram à discussão o burnout e o stress profissional, com esta pandemia corremos o risco de os profissionais de saúde entrarem em burnout, agora ou mais tarde?
MG: Já estamos com uma taxa elevada de burnout. Antes da pandemia, a Ordem dos Médicos tinha feito um grande estudo, a nível mundial, sobre a prevalência do burnout nos médicos e a taxa em Portugal é das mais elevadas da Europa. Isso deve-se às condições de trabalho que nós tínhamos, nomeadamente o excesso de tarefas atribuídas aos médicos e os tempos extremamente reduzidos de consultas. Querer dar resposta às necessidades dos nossos doentes e, simultaneamente, não ter capacidade para o fazer, cria, obviamente, stress nas pessoas.
O número de profissionais que temos no Serviço Nacional de Saúde é um número baixo para aquilo que é necessidade da população portuguesa. Recordo que temos cerca de 29 mil médicos no Serviço Nacional de Saúde, ou seja, um número extremamente baixo, se considerarmos que desses médicos, cerca de 19 mil são especialistas e 10 mil são médicos internos em formação. E em Portugal temos muitos médicos que trabalham só no setor privado. Neste momento, temos a trabalhar em exclusivo no setor privado mais de 13 mil médicos.
EK: Mas a resposta dos profissionais tem sido notável.
MG: Os médicos, enfermeiros, farmacêuticos e todos os profissionais de saúde, estão a fazer um trabalho extraordinário nesta altura de crise. A resiliência e a capacidade de resposta dos nossos profissionais tem sido brilhante, mas quando esta pandemia terminar vai ser um problema sério. Porquê? A ministra da Saúde reconheceu publicamente aquilo que a Ordem dos Médicos já tinha dito: há muitos doentes não COVID, a serem prejudicados por causa da COVID, nomeadamente doentes com enfartes agudos do miocárdio, doentes com doenças crónicas como diabetes ou doenças oncológicas.
Disse também que vai alterar o despacho que fez, para que os hospitais e os centros de saúde comecem a retomar a sua atividade normal. Isto é bonito de dizer, mas não é bonito não percebermos como é que isso vai ser feito. Porque a verdade é que o Serviço Nacional de Saúde, da forma que está organizado, dificilmente consegue ter capacidade de resposta para tudo isto. Enquanto tivermos um número elevado de doentes COVID, enquanto estivermos a lidar com esta infeção, não vai ser fácil dar a mesma resposta aos doentes não COVID, sem criar as condições adequadas para isso.
Além disso, também não podemos transformar a relação médico/doente, que é uma coisa muito importante, em consultas telefónicas. Por telefone, o que se pode fazer é dar um parecer, ouvir o doente, dar uma opinião. Não podemos transformar aquilo que deve ser uma consulta, num contacto telefónico. Isso fez-se durante algum tempo nesta fase COVID e, por isso, é que há muitos doentes que estão a ser prejudicados, mas isto não pode acontecer de forma permanente. A medicina não é isto.
EK: Qual é, na sua opinião, a melhor forma de dar resposta às necessidades dos doentes não COVID?
MG: Temos de nos reorganizar de forma adequada. Podemos ter de utilizar outros meios, para além daqueles que são habituais no Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente integrar aquilo que é atividade clínica que existe no setor privado com o que está a ser feito no Serviço Nacional de Saúde. Qual é um dos grandes problemas que temos habitualmente? Muitos doentes não vão às consultas porque têm medo. O maior problema é este. Não vão às consultas, não vão fazer exames, não há cirurgias. Os doentes não querem ir, porque têm medo de apanhar a infeção.
O segundo maior problema é o facto de concentrarmos toda a energia e toda a capacidade de resposta do SNS nos doentes COVID, reduzindo a outra atividade. Isto permitiu que o SNS desse uma resposta adequada, porque o SNS não consegue dar uma resposta adequada a tudo ao mesmo tempo.
Esta resposta, aos doentes não COVID, é uma urgência. Há muita gente a morrer, porque tem medo de ir aos hospitais, porque tem medo de ficar infetada. E nós, desde o dia dois de março, dissemos que deviam existir hospitais COVID e hospitais não COVID, ou pelo menos, áreas nos hospitais que tratassem doentes COVID e não COVID, com circuitos completamente independentes. Desta forma, conseguimos passar uma mensagem de tranquilidade aos doentes. É preciso dizer às pessoas que podem ir ao serviço de urgência, porque não vão apanhar a infeção, que podem ir às consultas e podem fazer exames.
Podemos confiar no sistema de saúde. O verdadeiro milagre de Portugal tem rostos e tem nomes, tem biografias, tem trajetos, tem coragem e tem medos. São as pessoas que cuidam de nós
EK: Gostaria de deixar uma mensagem à população portuguesa?
MG: A mensagem que eu posso transmitir, neste momento, e que é importante, é que a população pode confiar no sistema de saúde. O verdadeiro milagre de Portugal tem rostos e tem nomes, tem biografias, tem trajetos, tem coragem e tem medos. O verdadeiro milagre são as pessoas que cuidam de nós todos os dias, e são os próprios cidadãos que souberam antecipar medidas, à margem daquilo que a Direcção-Geral da Saúde ia dizendo, ou não dizendo, para que conseguíssemos, conter a infeção.
As pessoas têm de ter confiança, não podem ter medo de recorrer aos serviços de urgência, ou ao centro de saúde, caso tenham alguma situação aguda ou urgente.
Finalmente, quero deixar uma mensagem de esperança, porque este combate contra este vírus, que ainda é um bocado desconhecido para nós, é um combate que estamos a enfrentar com eficácia. Estamos a ter um bom desempenho, graças ao milagre de Portugal, graças às pessoas e aos profissionais. E penso que, a curto prazo, esta primeira batalha ficará resolvida. Sendo que vamos ter de esperar algum tempo, para ter uma vacina, não sei quanto tempo, isso é difícil de dizer, mas poderemos ter de esperar quase um ano.