Share the post "Entrevista. A forma como os pais reagem é uma bússola para as crianças"
O Verão chegou e as aulas, não presenciais, já terminaram. Nesta nova fase, pós desconfinamento, que balanço fazemos da telescola e das aulas online? Qual o impacto na vida das crianças do uso da máscara, da falta do toque e do abraço, do afastamento dos amigos e do cancelamento das atividades sociais?
Para obter resposta a estas questões, o Ekonomista esteve à conversa com a psicóloga infantil, Linda Candeias.
Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Educação da Criança e pós-graduada em Neuropsicologia e em Neuroeducação, Linda Candeias exerce funções no Prisma – Centro de Desenvolvimento e Terapias e no Hospital CUF, no Porto.
O impacto da pandemia e das medidas de desconfinamento nas crianças
Ekonomista: O uso de máscara, o confinamento, as atividades sociais e familiares canceladas e o facto de as crianças terem estado sem ir à escola, pré-escola ou creche (presencialmente) pode ter deixado marcas ou traumas nas crianças?
Linda Candeias: Não é fácil prever o impacto desta situação, visto que nunca a vivemos. Ainda não há estudos suficientes. Não deixa de ser uma situação totalmente nova e incerta, o que nos faz prever um aumento da ansiedade, por exemplo.
Estar confinado poderá fazer surgir reações emocionais complexas e emergirem emoções mais negativas, como raiva, tristeza, medo…mas, não será esta uma resposta normativa a este contexto atual? É importante que expressemos as emoções de forma adequada, sem que isso seja “psicopatologizado”.
Para além disso, concorrem diversos fatores, quer protetores, quer de risco, pelo que irá existir uma variabilidade significativa na forma como todos nós respondemos a esta situação. Por exemplo, temos de ter em conta o estado emocional prévio, perturbações já existentes, o suporte social e familiar, o
estado emocional dos pais, a estabilidade da dinâmica familiar e das rotinas…
Não nos podemos esquecer que a forma como os pais reagem a tudo isto também será uma bússola para as crianças. Estou convicta de que é a forma como cada um de nós responde ao confinamento e a todas as medidas impostas que irá ter um peso preponderante no futuro e não o confinamento por si só.
EK: A falta do toque, do abraço, o estar com os outros em menor número, mantendo as devidas distâncias e o uso da máscara, pode vir a diminuir capacidade de sociabilização e a forma como as crianças de agora se irão relacionar no futuro?
LC: Já dizia Aristóteles que “o homem é um animal social”. Será difícil para todos, particularmente para as crianças, que necessitam de expressar e contactar com os afetos, bem como de uma socialização livre.
É imprevisível o resultado destas medidas, mas são as que se impõem neste momento. É importante salvaguardar a vida. Explicar isso às crianças, de acordo com o seu nível de desenvolvimento e com o cuidado de não exacerbar medos e ansiedades, é importante.
Teremos de aguardar, com calma e serenidade. A resposta de uma será diferente da resposta de outra, mas as crianças são, normalmente, mais resilientes do que pensamos. E criativas! As consequências dependem de tantos fatores, que é impossível prever o que irá acontecer.
EK: Em que idades é mais problemático este distanciamento social e como podem os pais tentar minimizar esta situação?
LC: Penso que poderão existir pontos problemáticos em todas as idades. É difícil dizer em que fase do desenvolvimento será mais problemático, até porque dependerá de muitas variáveis. As mais novas ainda estão a aprender a socializar.
Numa idade muito precoce, as crianças interagem mais no contexto familiar, pelo que talvez não sejam as mais afetadas pelo distanciamento. Até no que concerne ao confinamento, para crianças muito pequenas, pode ser fantástico ter os pais em casa durante tanto tempo, desde que esse ambiente e relação sejam securizantes e responsivos, claro.
Não obstante, precisam de aprender a partilhar, a brincar com os outros, a resolver conflitos, a comunicar, a cooperar, a empatizar… É importante que a família promova oportunidades para que a criança possa desenvolver estas competências, mesmo com o distanciamento social.
Poderão mostrar-se mais carentes, pedir mais atenção, ou até mostrar-se mais irritáveis. É necessário gerir estas emoções com compreensão, pois são os mecanismos que têm para se expressar. Seria importante que os pais promovessem o jogo simbólico, o faz-de-conta, as estratégias de resolução de problemas simples, as rotinas e os horários para que haja previsibilidade, a modelagem de comportamentos sociais adequados…
Podem ver vídeos ou ler histórias em conjunto, distribuir tarefas para realizar em casa, aprender a fazer algo novo, estar em família e apelar à criatividade, com jogos de tabuleiro, arte, trabalhos manuais, culinária.
Fundamentalmente, proporcionar momentos de qualidade, em família e até individualmente.
EK: E as crianças em idade escolar?
LC: No caso das crianças em idade escolar, e particularmente na adolescência, o grupo de pares é muito importante. Contudo, são jovens que já nasceram num período digital, que estão muito familiarizados com a tecnologia e que já a usavam para interagir com os amigos.
Nesta fase do desenvolvimento, talvez se possa relaxar um pouco o tempo passado online, mas sem abusos. Aproveitarem para praticar o mindfulness e, claro, proporcionar momentos de qualidade em família, com atividades adequadas à idade.
Manter rotinas e horários também é muito importante, assim como estar disponível para ouvir, até o que eles não verbalizam. Mas, pais, descansem também, por favor! Cuidem-se e aproveitem para se centrarem no momento presente. O autocuidado é muito importante.
EK: O tempo de ecrã das crianças e adolescentes aumentou consideravelmente durante esta pandemia, seja devido às videochamadas, telescola, aulas online, tablet, etc. Que implicações pode isto vir a ter na saúde mental e capacidade de sociabilização destas crianças?
LC: Não temos ainda resposta para isso. Depende, mais uma vez, de diversos fatores, como a idade da criança, por exemplo. Contudo, podemos refletir… O tempo de ecrã aumentou, de facto. Mas de que forma utilizam esse tempo de ecrã? Para as aulas online, para o #EstudoEmCasa, para interagir com amigos, para manter o contacto com familiares…
Temos de pensar em termos de custo-benefício. Há mais tempo de ecrã, certo. Mas não foi a tecnologia que nos permitiu diminuir a distância neste período?
EK: É importante manter regras?
LC: Manter algumas regras claras é importante, como desligar os equipamentos antes de ir para a cama, encontrar outras formas de entretenimento durante o dia, manter a atividade física, passear um pouco ao
ar livre, brincar, fazer as refeições sem ecrãs ou interrupções…
As crianças sabem que este é um período excecional, mesmo que seja necessário os pais reiterarem isso. Se os ajudarmos a regular o tempo que passam em frente aos ecrãs, será mais fácil.
Temos também que retirar alguma pressão dos pais. É completamente compreensível que não consigam manter integralmente as rotinas e regras que existiam antes do confinamento.
Os pais não têm que ser perfeitos, especialmente agora.
EK: Com a pandemia, as crianças foram separadas dos seus amigos e professores. Agora que as aulas, não presenciais, já terminaram, que balanço faz sobre a telescola, as aulas online e sobre a forma como as crianças e adolescentes reagiram à mesma?
LC: Penso que o #EstudoEmCasa foi um bom esforço por parte das entidades competentes e, sobretudo, dos professores. Queria, antes de mais, elogiar os profissionais que se disponibilizaram para estar na “linha da frente” de um projeto experimental e urgente, que deram a cara e o seu melhor, para que não se perdesse este final de ano.
Acho que poderia ser interessante dar espaço à continuidade deste modelo, dada a incerteza que vivemos neste momento, num registo mais adaptado às crianças e adolescentes que temos hoje, que têm um acesso tão fácil à informação e a tantos conteúdos. Poderia pensar-se num registo mais dinâmico, interativo, que utilizasse outros meios à disposição.
Reconheço que não seria fácil, uma vez que nem todos têm acesso aos mesmos recursos, por isso, deveria ser um modelo bem pensado e mais igualitário. Deve também ser mais inclusivo, até para crianças com necessidades específicas (por exemplo, um aluno com défice de atenção terá certamente dificuldade em assistir à aula completa e em reter os conteúdos, sentado, com tantos estímulos distrativos em casa).
Tenho algumas crianças que dizem ser muito difícil manter a atenção na aula dada pela televisão. Para além de que os conteúdos podem não estar de acordo com o que estão a aprender no momento, no registo síncrono.
Ainda que a telescola seja interessante, é importante salientar que a escola é um contexto seguro para um grande número de crianças, sendo o professor, por norma, uma figura a quem se vinculam e em quem confiam. Confere estabilidade e previsibilidade, algo muito importante para as nossas crianças.
EK: Do que sentem mais a falta, a maioria, das crianças e adolescentes?
LC: Nisso, são unânimes: Dos amigos! De brincar no recreio, por exemplo. Diversos já me disseram, inclusivamente, que nunca pensaram ter saudades da escola.
Alguns corrigem-se, de imediato: “Mas, Linda, são saudades do recreio!”. Também lhes permitiu ver a escola de uma forma diferente, o que foi positivo, parece-me. Afinal é verdade que damos valor às coisas quando as perdemos.
EK: Considera que durante esta pandemia a escola, a pré-escola e as creches estiveram à altura das necessidades e do bem-estar das crianças?
LC: Acho que o esforço hercúleo feito por todos os profissionais envolvidos no contexto escolar é de valorizar, tendo em conta aquilo que tínhamos pela frente um confinamento e uma pandemia sem fim à vista -, a urgência com que tinha de ser feito e a flexibilidade exigida.
Acho que estiveram à altura do que lhes era exigido. Estão de parabéns!
EK: Considerando o contexto atual, e pensando no próximo ano letivo, é ou não essencial repensar a escola na sua globalidade?
LC: Penso que esta é uma excelente oportunidade para repensar a escola que temos: Se está adaptada aos alunos que temos hoje, que têm o “mundo” na ponta dos dedos; se os conteúdos lecionados hoje ainda fazem sentido ou necessitam de atualização; se os trabalhos de casa servem o propósito para o qual inicialmente foram criados; se o modelo expositivo ainda faz sentido nas crianças e adolescentes ativos que temos hoje; se os testes deverão ser a modalidade primordial de avaliação; se não seria importante apostar na
aprendizagem multissensorial, que respeite as particularidades e aptidões de cada um, na arte, na música, na atividade física, no contacto com a natureza…
Devemos até pensar se estamos a ser verdadeiramente inclusivos. Vejo crianças com défice de atenção ou dislexia com o mesmo volume de trabalho, sem estratégias verdadeiramente adaptadas, especialmente nesta fase da escola “online”. Isso preocupa-me.
Tem sido uma batalha muito difícil para algumas crianças. E para os pais! Não se trata de lhes facilitar o trabalho, mas de compreender as suas características e necessidades. Aliás, cada criança é uma criança…
EK: Com a telescola e “escola online” o envolvimento das famílias nas atividades escolares é fundamental?
LC: Sou da opinião que todas as famílias devem estar envolvidas na escola em geral, sempre, consoante aquilo que puderem disponibilizar. É fundamental na telescola, escola “online e na escola “tradicional”.
Penso que a telescola e as aulas online são um caso particular, porque muitos pais também se encontram em teletrabalho. Não é fácil de gerir, nem se pode esperar que seja perfeito.
Será uma oportunidade para a reinvenção, até da própria telescola e da escola em geral.