Muito se tem discutido sobre a validade da quarentena e isolamento social na contenção desta pandemia. A verdade é que termos como coronavírus ou COVID-19 entraram de forma extraordinariamente rápida no léxico corrente, quase à velocidade com que a doença se espalha mundo fora.
Mas toda a gente tem uma opinião, toda a gente leu um argumento, toda a gente tem um amigo de um amigo de um primo que é médico no hospital a, b ou c.
No entanto, as únicas medidas conhecidas para combater a pandemia passam pela observância de algumas regras de higiene (como usar máscara e lavar as mãos com frequência) e pelo distanciamento social. Em casos mais extremos o isolamento.
Não se pense, contudo, que esta teoria é nova. Engana-se. Como diz o povo já tem barbas e o primeiro caso que lhe contamos ocorreu no século XVII.
eyam: uma quarentena salvadora
Esta história leva-nos até Eyam, uma pequena aldeia em Derbyshire, Reino Unido, que ficou famosa pela implacável quarentena a que os seus habitantes se auto-impuseram durante seis meses, no pico da peste bubónica, em 1665/66.
A epopeia é contada pelo jornal inglês The Observer. Com cerca de 700 habitantes, Eyam isolou-se para prevenir a doença, que vinha de Londres, impedido assim que se alastrasse ainda mais para Norte do Reino Unido. Morreram mais de 250 habitantes e algumas famílias foram dizimadas por completo.
Nos registos conta-se, por exemplo, que Elizabeth Hancock perdeu o marido e os seis filhos no espaço de oito dias. As regras da altura obrigavam, em tempo de praga, as famílias a enterrar os seus mortos, levando Elizabeth a cavar sete sepulturas.
A verdade é que a estratégia de quarentena e isolamento foi um sucesso. A doença, que só na capital Londres ceifou 100 mil vidas, acabou por ser contida. As cidades vizinhas de Bakewell, Manchester e Sheffield, muito mais populosas, foram salvas pelo sacrifício dos habitantes de Eyam.
Sacrifício pela comunidade
Assim, não deixa de ser impressionante o paralelo entre o que se passou numa distante aldeia inglesa há 350 anos e o confinamento a que meio mundo está agora sujeito fruto do coronavírus.
Numa época que podemos considerar como pré-medicina, o que se pediu aos habitantes de Eyam foi isolamento social, não viajar e solidariedade na comunidade para acudir aos mais fracos. Soam a familiares estas medidas?
A comida era deixada nas cercanias da aldeia (paga com dinheiro embebido em vinagre) e quando era preciso discutir algo relacionado com a comunidade, os habitantes dirigiam-se a um anfiteatro natural, onde conversavam mantendo uma distância de segurança entre cada um e onde era rezada a missa, também com uma distância de segurança entre os fiéis. Também lhe parece familiar?
Há até o registo da dramática história de amor de Emmott Sydall e Roland Torre. Este último vivia na aldeia vizinha e, reza a história, encontravam-se todos os dias a uma distância razoável só para se olharem. Um dia a bela Emmott deixou de aparecer. Tinha sucumbido à praga.
Após duas semanas sem vítimas, em Novembro de 1666, os sinos tocaram a repique durante todo o dia para assinalar o fim da quarentena.
Três séculos e meio volvidos sobre estes acontecimentos, Eyam volta a enfrentar uma pandemia. Os mais velhos estão recolhidos em casa e a população mais nova desdobra-se para ajudar. Os negócios começam a tremer, mas quem sabe se quando a tormenta passar a fantástica história de Eyam não se torna uma atração para muitos visitantes.
Quarentena: o cordão que fechou o Porto
Avancemos duzentos e poucos anos, mais propriamente até 1899 e à cidade do Porto. A 4 de julho desse ano, Ricardo Jorge, o eminente médico que haveria de dar o seu nome a um instituto, recebeu uma nota de um comerciante da Rua de São João, na Ribeira, a informar da estranha morte de algumas pessoas na Rua da Fonte Taurina, também junto ao Douro, onde viviam imigrantes galegos, empregados como carrejões ou moços de fretes.
Ricardo Jorge manda lá um funcionário que, de regresso, descreve um quadro já muito preocupante. O médico vai pessoalmente ao local e às febres juntam-se os gânglios linfáticos inchados. Um quadro clínico a remeter para a peste bubónica, que acaba por ser confirmada por vários médicos estrangeiros que se deslocaram a Portugal, expressamente para estudar a doença.
A gravidade da situação levou a que em 24 de agosto de 1899 fosse estabelecido um cordão sanitário à volta da cidade do Porto, vigiado pelas autoridades militares, e que se estenderia até 22 de dezembro.
Cordão polémico
Esta iniciativa das autoridades não foi bem recebida, em especial pelos comerciantes, e Ricardo Jorge foi mesmo obrigado a abandonar a cidade debaixo de um coro de insultos e até ameaças de morte.
Os doentes são inicialmente internados no Hospital de Santo António, mas posteriormente transferidos de noite para o Hospital de Nosso Senhor do Bonfim, o popular Goelas de Pau (agora Hospital de Joaquim Urbano). De acordo com os dados disponíveis, a peste bubónica no Porto provocou 132 mortes, num universo de aproximadamente 320 casos identificados.
O cordão sanitário, se bem que muito contestado, terá sido importante para obstar à rápida propagação da doença a outras zonas do país.