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Quando é que o endividamento das famílias se torna realmente preocupante? Quais os mecanismos de ajuda e como evitar o incumprimento? João Calado, coordenador Gabinete de Orientação ao Endividamento dos Consumidores (GOEC) deu, durante a segunda conversa do ciclo “Finanças (s)em crise”, alguns conselhos para evitar que a situação se descontrole.
Sabia que, mesmo que tenha todas as suas contas pagas, pode estar em situação de endividamento? “Endividamento não é apenas quando não se consegue pagar as contas. A partir do momento em que recorremos ao crédito para adquirir um bem ou fazer uma determinada despesa estamos a endividar-nos”, começou por explicar João Calado.
Ou seja, um crédito implica sempre uma dívida e a forma como esse endividamento pode ou não complicar-se depende, e muito, da forma como se encara esse compromisso.
“Se fizermos o recurso ao crédito de uma forma bem pensada e racional dentro da nossa disponibilidade financeira o endividamento é perfeitamente sustentável e é uma forma de gerirmos a nossa vida e melhorarmos o nosso bem-estar”, defendeu o responsável pelo GOEC.
“Estarmos endividados não é, por si só, um sinal de algo negativo.”
Há, no entanto, um “mas”. Isto é, o crédito pode ser uma forma de viver melhor, mas torna-se uma fonte de problemas quando “esse recurso ao crédito é excessivo, mal pensado ou quando acontecem eventos impossíveis de prever e com um impacto negativo em termos financeiros”.
O stress financeiro transforma-se em incumprimento temporário e pode levar mesmo a um sobre-endividamento.
Sinais de alerta para o sobre-endividamento
Assim, é importante estar alerta para alguns sinais que podem indicar que a sua situação pode estar a tornar-se preocupante.
João Calado considera que tal acontece, quando, por exemplo, “ainda longe do fim do mês, já há dificuldades para fazer o pagamento de prestações e outros compromissos”.
Para o coordenador do Gabinete de Orientação ao Endividamento dos Consumidores, essas dificuldades podem ser um sinal de que o volume de despesas é excessivo. E nesse caso, se a pressão do ponto de vista financeiro se intensificar, pode haver risco de incumprimento.
O melhor será começar a agir, porque este é um problema que não se resolve com o passar do tempo. Muito pelo contrário: “Se isso for sistemático há-de acontecer um mês, quando as coisas correrem menos bem, em que já não se consegue pagar uma prestação. E é assim que normalmente começa”.
Outro sinal de alarme é quando se procura no crédito uma solução para fazer “esticar” o dinheiro até ao fim do mês. Ou então recorrer ao crédito para pagar outros créditos.
João Calado dá um exemplo bastante concreto: “Quando chegamos a dia 17 ou 18, estamos com dificuldades para fazer algum pagamento e usa-se o cartão de crédito para pagar as despesas que se tinha pensado fazer, mantendo-se o estilo de vida e as aquisições com recurso a outro crédito”.
A importância (relativa) da taxa de esforço
Quando se fala em crédito e em endividamento surge muitas vezes a expressão taxa de esforço. O conceito, embora útil, não é universal, diz o coordenador do GOEC, lembrando que “não há uma taxa adequada a toda a gente” e que é necessário ter em conta outros fatores como contratos de crédito, outros contratos, rendimentos ou despesas do dia-a-dia.
A taxa de esforço é, assim, o peso que uma prestação tem no nosso rendimento. “Quando se diz que a taxa de esforço é de 40% isso significa que aquela prestação vai consumir 40% dos nossos rendimentos”, explica.
Como avaliar então se uma determinada taxa de esforço é adequada à nossa situação? Eis o conselho de João Calado: “Quando estamos com taxas de esforço elevadas, de 30, 40 ou 50%, quer dizer que essa percentagem do nosso rendimento está a ser alocada a uma única prestação. Devemos pensar se o valor que sobra é suficiente para as nossas despesas”.
“Quando vamos fazer um crédito devemos perceber que é algo que vai condicionar a nossa vida nos próximos anos.”
Outra dica importante para evitar o endividamento é antecipar eventuais dificuldades. Isto é, por muito otimistas que possamos ser, é preciso contar sempre com um certo grau de incerteza. A pandemia e a crise que se seguiu é a melhor prova de que nem sempre as coisas correm como se esperava.
Por isso, o conselho deste especialista é que, “ao negociar um crédito e em vez de forçar o banco a ir ao limite da taxa de esforço, ponderar e dizer que prefere baixar a taxa de esforço”. A verdade é que nem sempre há capacidade financeira para fazer este tipo de negociação. No entanto, saber até onde ir pode evitar dissabores futuros.
“O crédito cria uma restrição financeira para o futuro que é muito forte. Tira-me liberdade de ação.”
Mecanismos para ajudar famílias endividadas
A funcionar desde 2006, o GOEC tem lidado sobretudo com casos de pessoas que “chegaram a um limite de endividamento elevado, não pelo valor, mas pela fragilidade financeira de algumas famílias”.
Isto é, basta mais uma prestação, que pode estar relacionada com crédito ao consumo, por exemplo, para desequilibrar as finanças desse agregado. São situações já muito perto do sobre-endividamento e em que já existe incumprimento.
Por muito difíceis que sejam estas situações, não significam necessariamente o “fim da linha”. O papel do GOEC é orientar e apoiar as famílias para que possam negociar com as instituições financeiras uma eventual solução.
Além disso, muitas pessoas desconhecem que existem mecanismos que as próprias instituições financeiras podem usar para impedir que a situação se agrave.
PARI
O Plano de ação para o risco de incumprimento (PARI) é um deles. No fundo, é uma forma de estas entidades acompanharem os contratos de crédito e perceberem se existe risco de incumprimento.
“As instituições fazem-no, mas não é a preocupação número um”, admite João Calado.
A boa notícia é que o início deste processo pode ser feito pelo cliente. Assim, o conselho é que aja imediatamente se sentir que está em dificuldades: “Deve dirigir-se à instituição financeira, antes até de entrar em incumprimento e alertar que está em stress financeiro, acionando o PARI. Este é o primeiro passo”.
Perante isto, a instituição deve tentar encontrar uma solução, ajustando as condições do crédito à situação do cliente. E isto pode passar, por exemplo, por alargar o prazo para pagar o empréstimo.
PERSI
Quando já deixou de pagar as prestações o PARI deixa de ser solução. Assim, entre o 31.º e o 60.º dia de incumprimento pode ser acionado o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI).
“Neste caso, a entidade é obrigada a abrir e integrar [o caso] no PERSI e tem que seguir procedimentos, dando e pedindo informação às famílias para se encontrar uma solução”, explica o coordenador do GOEC.
Mas aqui o grau de complexidade acentua-se. “Não é fácil, porque as famílias já estão numa situação de sobre-endividamento. Se a instituição financeira não tiver muita flexibilidade, dificilmente encontra uma solução”.
Rede de Apoio ao Consumidor Endividado
Numa situação como esta, aconselha João Calado, as famílias devem entrar em contacto com uma das entidades da Rede de Apoio ao Consumidor Endividado (RACE), a que o GOEC também pertence.
No seguimento desse contacto, o gabinete que coordena “ajudará a família a relacionar-se com a instituição financeira, não mediando, mas estando ao seu lado para ajudar a preparar as respostas, a tomar as decisões, a avaliar”.
Já as dívidas ao Estado ficam fora do âmbito desta rede de apoio e também não podem ser objeto do PARI ou PERSI.
O GOEC e os membros da RACE têm, por isso, uma ação limitada nestes casos, mas podem, por exemplo, ajudar a escrever uma exposição. João Calado diz que “o Estado, por natureza, tem tendência a aceitar planos de pagamento”, pelo que poderá ser este o caminho.
Consolidar créditos sim, mas com cautelas
Quando existem vários empréstimos com diversos prazos de pagamento, a consolidação de créditos pode ser uma forma de controlar o endividamento. No entanto, esta não é uma solução milagrosa nem isenta de riscos.
“Permite ir junto da instituição financeira, avaliar qual é a prestação que aquela família pode pagar e tentar chegar a um crédito que tenha um prazo suficientemente longo e que seja aceitável para a instituição financeira para assegurar que todos aqueles créditos mais curtos possam ser consolidados com uma prestação mais baixa”, explica João Calado, admitindo que “ajuda se estiver associado a um crédito habitação em que a casa fique como garantia”.
Trata-se de um alívio imediato no orçamento, mas há que ter atenção: “O grande problema é que por vezes quem faz essa consolidação ainda vende mais crédito. E a família fica a dever ainda mais e com uma prestação que pode criar stress financeiro”.
“A consolidação permite à família ganhar consistência financeira, rearranjar o seu orçamento e cumprir as suas obrigações, mas não faz milagres.”
Já no caso em que a dívida muda de mãos e passa para uma empresa de recuperação de créditos os conselhos são outros.
João Calado avisa que estas empresas “não vão perdoar a dívida, mas há margem para negociar”, sobretudo no que respeita a juros e penalizações. Em todo o caso, “se tem rendimentos penhoráveis e não chegar a acordo, eles penhoram”, garante.
Como se aplicam as mesmas regras de negociação do que nos casos anteriores o conselho é que seja contactada uma entidade no âmbito da RACE para prestar o apoio necessário.
A insolvência não é solução
Como vimos, existem várias formas de lidar com o endividamento e de procurar uma solução. O último recurso, fortemente desaconselhado pelo especialista, é a insolvência.
“Se alguém tentar vender a ideia de que a insolvência é a solução fácil, barata e milagrosa está a mentir”.
A insolvência obriga a recorrer a um advogado e também não pode ser requerida em qualquer circunstância.
“Só é solução quando os rendimentos atuais e futuros não são suficientes para pagar a dívida, quando a pessoa está a ser assediada por credores e tem todas as as suas fontes de rendimento penhoradas até ao limite legal”, diz João Calado.
É “um processo muito mau”, avisa: “A família vai estar presa a um compromisso durante cinco anos. O tribunal é que decide quanto é que a família vai ter para viver, vai ter alguém a gerir as suas contas. Ao fim desse período, se tudo correr bem, pode haver um recomeço. Vão perder tudo. Depois vão poder recomeçar, mas porque perderam tudo”.
O caso das moratórias
Podem as moratórias bancárias ser uma forma de gerir o endividamento? João Calado encara esta situação com bastante prudência: “Ao adiar o período dentro do qual vou pagar a minha dívida, a instituição vai reaver o capital mais o juro e o juro é calculado tendo em atenção a taxa de juro e o tempo que passa”.
Assim, e no final da moratória, “a prestação vai ser igual se optaram por continuar a pagar juros, será um pouco acrescida de deixaram de pagar juros”.
“A moratória é empurrar o problema para a frente”.
Na sua opinião, “a grande vantagem da moratória é se pensarmos nesta crise como uma crise conjuntural e concentrada no tempo e em que, findo este período, tudo voltará mais ou menos ao normal”.
Ainda assim, lembra que é importante que as famílias tenham “consciência de que pode ser um problema no futuro se não recuperarem a fonte de rendimento”.
Caso isso aconteça, a solução pode ser entrar no processo de negociação com as instituições de crédito, pedindo, por exemplo, um período de carência ou alargamento do período do empréstimo. Mais uma vez, o apoio da RACE pode ser importante nesta negociação.
Nunca é tarde para pedir ajuda
Apesar das dificuldades para reverter uma situação de endividamento, o responsável pelo GOEC diz que “nunca é tarde demais, não se pode é pedir milagres”.
É o que acontece, por exemplo quando o valor da dívida é tão alto que “todos os rendimentos até ao fim da sua vida não seriam suficientes para pagar”. São situações limite, bastante comuns quando a concessão de crédito era menos rigorosa.
A responsabilização da instituição de crédito não diminui a responsabilidade individual e algumas cautelas na adesão a créditos. “As instituições financeiras são comerciais. Não quer dizer que não sejam sérios, mas são comerciais. Tentam vender”, alerta.
Passo a passo para recorrer ao GOEC
O GOEC, tal como todas as entidades da RACE, é grátis e isento. Isto é, não tem relacionamento com qualquer entidade financeira.
O primeiro passo é contactar por telefone (21 392 59 42) ou por e-mail, através do endereço [email protected].
Uma das coisas que pode fazer desde logo é pedir mapa de responsabilidade de crédito no Banco de Portugal, um documento gratuito e essencial para que a sua situação possa ser avaliada pelo GOEC.
Depois, esteja disponível para interagir com os elementos deste gabinete para que, juntos, possam encontrar uma solução.
Veja ou reveja na íntegra a conversa com João Calado, inserida no ciclo “Finanças (s)em Crise”.
Para ajudar a gerir as suas finanças neste contexto de pandemia, o Ekonomista criou ainda o Ebook Finanças (s)em Crise. Numa linguagem simples e descomplicada, vai encontrar toda a informação de que precisa para saber, por exemplo, onde e como cortar despesas ou como criar um fundo de emergência.
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