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A obesidade nas crianças é um problema que se tem vindo a agravar. Sabia que a pior coisa que pode dizer a uma criança ou adolescente que tem excesso de peso é “tu não podes comer mais”, ou que a frutose, usada na maior parte dos sumos comerciais, está fortemente associada a uma doença que era típica dos alcoólicos?
Nesta entrevista, a pediatra do Hospital CUF e especialista em obesidade infantil, Carla Rêgo, fala sobre estas e outras questões relacionadas com o excesso de peso na idade pediátrica.
obesidade nas crianças: olhar o problema
Ekonomista: Somos todos iguais? Ou há, de facto, quem engorde com mais facilidade?
Carla Rêgo: Cerca de 94% da obesidade nas crianças é primária, ou seja, não tem nenhuma causa de doença por trás. Depois há a obesidade secundária, em que há alterações hormonais e doenças que estão associadas à obesidade.
Mas dizer que a obesidade primária não tem uma causa, é esconder o sol com a peneira, por uma razão, nós não somos todos iguais. Há indivíduos que são mais
suscetíveis a ficarem obesos e outros que são menos suscetíveis a ficarem obesos. Há crianças e adolescentes que comem tudo quanto é porcaria e continuam a ser magros e há outros que fazem um pequeno desvio da sua dieta alimentar e facilmente aumentam de peso.
EK: Há genes que contribuem para sermos magros ou obesos?
CR: Alguns de nós, que temos mais facilidade em aumentar de peso, em ficar obesos, temos genes poupadores de energia. O que é que isto quer dizer?
Antigamente, quando não havia acesso aos alimentos, ou quando havia doenças, havia indivíduos que sobreviviam mais facilmente do que outros. Os que sobreviviam mais facilmente à fome eram aqueles que tinham genes poupadores de energia, ou seja, conseguiam resistir mais tempo sem ter comida.
Antigamente, estes genes poupadores de energia eram ótimos, porque permitiam sobreviver. Agora, é uma catástrofe, porque quando há abastança, eles vão conduzir a excesso de peso e obesidade.
Portanto, nós ainda temos na nossa sociedade, sobreviventes e, se calhar, uma percentagem considerável destes resistiram às catástrofes e à fome anteriormente, mas agora são aqueles que têm mais facilidade para engordar. Em contraponto, estão os gastadores de energia que são aqueles indivíduos que por muito que comam não engordam.
O primeiro tratamento da obesidade nas crianças é comportamental. Quando são crianças é fundamentalmente centrado na família, porque as crianças são dependentes da gestão familiar.
EK: Há mais fatores de risco para a obesidade?
CR: Para além da diferença genética que possa existir entre poupadores e gastadores de energia, há ainda uma programação no início da vida para risco de obesidade nas crianças. Um bebé de termo, que nasce com quatro quilos ou mais, filho de mãe obesa, mãe que aumentou muito de peso na gravidez, ou filho de mulher que fez diabetes gestacional, é um bebé que na barriga da mãe esteve sujeito a um ambiente de valores elevados de glicose e alteração da insulina.
Por isso, vai ser um bebé, que vai nascer com o seu metabolismo da glicose e da insulina alterado. Por este facto, e só por este facto, ele vai ter mais risco na sua vida futura toda, de vir a ter obesidade, diabetes e cancro. Tudo devido ao ambiente intrauterino que ele viveu.
No outro extremo, um bebé pequeno, que nasce com 2,500 gramas ou menos e que não recebe as quilocalorias de que necessita, seja porque a mãe passa fome (o que não acontece na Europa), ou porque a placenta não funciona bem (que é o que acontece cada vez mais na Europa, por fatores que ainda não conhecemos, mas provavelmente por tóxicos ambientais, por tóxicos alimentares e pelo tabaco), no futuro tem mais risco de ter diabetes, hipertensão e obesidade. O conceito da programação in útero dependente das experiências nutricionais precoces da mãe.
EK: Quais as complicações que resultam da obesidade?
CR: A obesidade é uma doença crónica à qual se associam outras doenças, nomeadamente cardiometabólicas, diabetes, hipertensão, dislipidemia, cancro; doenças ortopédicas e doenças comportamentais, como a depressão e a baixa autoestima.
Depois é uma doença multissistémica, porque por trás da obesidade está um processo inflamatório de baixo grau que acaba por atingir todos os órgãos e sistemas, inflamando-os e originando doença.
EK: O que fazer quando a obesidade já está instalada?
CR: O primeiro tratamento da obesidade nas crianças é comportamental. Quando são crianças é fundamentalmente centrado na família, porque as crianças são dependentes da gestão familiar.
O comportamento alimentar tem de andar sempre em paralelo com a atividade física. Manipulando a parte alimentar consegue-se uma redução de peso, mas essa redução resulta em perda de massa magra, mais do que massa gorda.
A massa magra é aquela que gasta mais energia, é metabolicamente mais ativa. Por isso, para estabilizar o peso é preciso fazer exercício físico, porque assim aumenta-se a massa magra e secundariamente queima-se massa gorda.
Na idade pediátrica o recurso a fármacos para tratar a comorbidade da obesidade é só no fim de linha, porque a obesidade per si, trata-se pela questão comportamental. O recurso à cirurgia pode ser colocado em idade pediátrica, nomeadamente na adolescência, mas obriga a uma série de requisitos.
EK: Como restringir a quantidade de comida a uma criança com excesso de peso ou obesa?
CR: Servir os pratos ao balcão, sem colocar travessas na mesa. E, aprender a cozinhar doses certas, para servir a quantidade adequada em cada um dos pratos. Assim, a panela fica vazia, o que significa que quando a criança ou adolescente diz “quero mais”, respondemos “enganei-me não tenho mais comida, mas tenho sopa, queres?”. A pior coisa que se pode responder a uma criança ou adolescente é “tu não podes comer mais”.
EK: Temos de dar o exemplo enquanto pais?
CR: Claro que sim. Esconder e ter alimentos em casa é um erro. O que não deve ser consumido no dia-a-dia não existe em casa. Outro grande drama é um irmão que é magro e outro que tem excesso de peso ou obesidade e os pais acham que a atitude tem de ser diferente.
Não tem, porque quando se trabalha comportamentos alimentares associados à obesidade nas crianças, trabalha-se comportamentos saudáveis que são iguais para uma criança com excesso de peso ou obesidade e para uma criança adequada em termos de estado nutricional.
E a regra em casa tem de começar no pai e acabar no filho mais novo, independentemente do estado nutricional. Porque a regra é: se são todos saudáveis, todos podem comer tudo, só que comem com regra saudável durante a semana e quando há exceção existe para todos.
Fazer a diferença em termos de abordagem, de proibição entre uma criança com excesso de peso e obesidade e uma criança adequadamente nutrida, em qualquer circunstância, é maldoso e perverso.
Fazer a diferença em casa nunca, na escola menos ainda. A escola não deve pisar o risco em termos de oferta alimentar pouco saudável, porque a escola
deve ser um local de aprendizagem de hábitos alimentares saudáveis.
EK: As escolas ainda cometem erros, em termos alimentares?
CR: Muitos e desde cedo. Precisava de mais do que os dedos da mão para os enumerar. E a começar no berçário… É catastrófico. E se nós estamos a tentar fazer perceber que a criança à semana tem de ter uma alimentação equilibrada, para depois fazer exceção ao fim-de-semana, a escola deve ter um comportamento saudável, até para deixar os pais terem o prazer de serem eles a prevaricar.
O consumo dos lácteos é muito acima daquilo que é recomendável. O consumo de proteína é quatro vezes superior àquilo que é recomendado e o consumo do sal é mais de 98% acima daquilo que é recomendável.
EK: Para além da obesidade e diabetes, que consequências pode ter o consumo de açúcar?
CR: Os açúcares usados na confeção culinária são a sacarose e a frutose. Atualmente, sabe-se que a frutose e a sacarose têm efeitos nefastos, nomeadamente a nível hepático. A frutose, usada na maior parte dos sumos comerciais, está fortemente associada a uma doença que era típica dos alcoólicos e que, hoje em dia, aparece já em idade pediátrica, que é a esteatose hepática.
Há crianças e adolescentes que devido ao elevado consumo de frutose e sacarose, e/ou na dependência de excesso de peso ou obesidade, têm fígados com infiltração gorda e inflamatória. Se os comportamentos que condicionam esta resposta do organismo não forem rapidamente travados, o risco de haver uma evolução para cirrose é enorme.
Uma equipa liderada por si criou o manual “Alimentação Saudável dos 0 aos 6 anos – Linhas de Orientação para Profissionais e Educadores”, da Direção-Geral da Saúde? Qual o objetivo deste documento e onde pode ser consultado?
Esse projeto surgiu após um estudo nacional que eu coordenei, em 2012, chamado EPACI – Estudo do Padrão Alimentar e do Crescimento Infantil.
Foi o primeiro e, neste momento, o único estudo português, com representatividade nacional, que mostra o que se come e como se cresce dos 0 aos 3 anos. Esse estudo, veio mostrar que, no primeiro ano de vida, a diversificação alimentar ocorre, em Portugal, de uma forma razoavelmente correta, cumprindo as recomendações. Mas, quando se diz, aos 12 meses, para a criança ser inserida na dieta familiar, é o descalabro completo. O consumo de bebidas açucaradas e sobremesas é brutal.
O consumo dos lácteos é muito acima daquilo que é recomendável. O consumo de proteína é quatro vezes superior àquilo que é recomendado e o consumo do sal é mais de 98% acima daquilo que é recomendável. Este estudo mostra que em Portugal todos estes erros associados a obesidade e doença começam muito cedo e, por outro lado, mostra que a prevalência do excesso de peso e obesidade começa já nesta idade.
Em Portugal começa-se a aumentar de peso muito cedo, a partir do final do primeiro ano de vida e as inadequações alimentares também começam muito cedo, a partir dos 12 meses. É preciso mudar.
A partir deste estudo que foi apoiado pela Direção Geral da Saúde, houve o desafio de se escrever recomendações. Este manual vem, uns anos depois, é certo, mas na sequência deste desafio. E tem como objetivo servir de manual de orientação para pais, profissionais de saúde e educadores.
Explica muito sobre o crescimento infantil, as necessidades nutricionais e faz recomendações sobre aquilo que deve ser feito em termos de oferta alimentar nesta fase da vida que é crucial. É de fácil consulta e acessível em termos de leitura a qualquer pessoa que trabalhe com crianças, desde pais a profissionais. O manual está no site da Direção Geral da Saúde ou no site do PNPAS – Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável e é de livre acesso.