Share the post "Postais do Camboja: dois regressos tão diferentes e tão felizes"
Querida S.,
este postal chega com um cheirinho diferente e um sabor a casa – a duas casas, que partilhámos, uma delas sem que cruzássemos caminhos.
Depois de sete meses no Camboja, rumei a terras lusas numa viagem que se estendeu por mais de três dias. 19 horas infernais de autocarro de Siem Reap até Ho Chi Minh e quatro voos com horas de espera desesperantes entre eles. O cansaço é uma coisa engraçada. Fez-me passar minutos infinitos a olhar para o tecto repleto de luzes no aeroporto de Singapura. Fez-me chorar quando, em Itália, me fizeram colocar a mochila no porão. E desapareceu quando, após uma viagem que me fez pisar o solo de seis países diferentes, aterrei na minha cidade-âncora. A cidade que, como nenhuma outra, me faz apertar o coração de felicidade.
São já quatro os anos que colecciono enquanto nómada, a percorrer quilómetros em busca de algo maior. São já quatro os anos em que, a cada regresso ao Porto, o abraço-casa dos que me recebem me faz sorrir feito criança.
Quando de volta ao conforto do que é familiar, foram muitas as coisas que me deixaram de olhos bem abertos e espírito surpreso. Poder fazer reciclagem, não ter formigas a escalar as paredes da cozinha, usar casaco, não ver lixo por entre o verde para lá da janela do autocarro, parar num sinal vermelho, passar horas à lareira, adormecer sem que os sonhos se desdobrem em Inglês. Pequenas Coisas.
As Grandes, essas, fizeram deste retorno um dos mais felizes. Fizeram de Maio um mês de uma intensidade quase brutal. Mês de reencontros improváveis com seres incríveis que partilharam comigo a magia da pequena Terra di Mezzo. Mês de pôres do sol no Jardim do Morro, de onde se vêem passar as pessoas, despreocupadas na sua rotina. Onde a vida continua, o metro passa, as gaivotas pipilam. Mês de jantares de encher coração e uma mão cheia de momentos a colocar no baú do Para Sempre. Maio, o mês que me viu ser turista tão perto de casa. Explorar as novidades no sobe e desce da Invicta, percorrer caminhos ao sol no Bussaco, visitar cantos mágicos na capital.
Mês que me fez querer ficar, pensar num regresso sem bilhete de partida. Mês de tantas emoções e incertezas. Porque o faço? Porque parto quando em casa a plenitude me bate à porta?
No último serão na Invicta, num pub de paredes recheadas de tesouros onde a luz que entrava não desvendava todos os seus segredos, uma das minhas pessoas-Porto fez-me ler um texto de uma rapariga que, contra o burburinho de quem a rodeava, rumou à Indonésia para um começo diferente. Um texto sobre coragem. Ou a ausência dela. Falava das muitas vezes que lhe diziam o quão corajosa fora por deixar tudo para trás e se fazer ao desconhecido. Falava do quão não precisara de coragem. Que, simplesmente, era o que sentia ter de fazer. Sinto o mesmo. Estou já de volta ao país quente onde se fala Khmer porque, por muitas pedras que tenha colocado na minha carruagem da felicidade quando em Portugal, sei que aqui o espírito cresce a cada passo que dou nas pequenas vielas da cidade. Em parte, sei que parto porque a plenitude não é certa com o passar do tempo e porque, depressa, a inquietude toma conta.
Pergunto-me onde ficam as inibições e todos os medos que julgamos parte de nós quando deixamos o ninho. No ar enquanto voamos rumo a terras longínquas ou num qualquer armazém de um aeroporto distante? Sei que o fazem, porém – que ficam algures, perdidas, esquecidas, já que ninguém volta por elas. É uma perda feliz, essa de nos livrarmos das amarras inconscientes que nos impedem de fazer o que, de olhos fechados, tanto queremos fazer.
Duas semanas no Camboja e a rotina já voltou a encaixar em mim. Regressei ao mercado ao virar da esquina na minha bicicleta vermelha, que é agora um híbrido que navega, dia sim dia não, pelas poças infindáveis que a chuva deixa para trás. Regressei ao pequeno canto onde a senhora de chapéu já sabe o que vou levar e me coloca sempre uma mão cheia de malaguetas no saco de pano. Voltei a passar pela pequena banca na minha rua onde me espera, de todas as vezes, o melhor ananás do Mundo e uma imensidão de sorrisos de quem o vende. Voltei à Pub Street para uma cerveja ao final do dia e aos imensos campos de flores de lótus onde tudo é já verde outra vez. Voltei a ensinar e a aprender.
Nem tudo foi um regresso, porém. Com a pressa que só o calendário pode imprimir, fiz uma lista. Uma lista do tanto que ainda há por fazer no Camboja. Vim decidida a mudar as minhas tardes, a procurar novos desafios. Vim decidida a trabalhar num hostel. E, assim, porque decidi fazê-lo, em menos de uma semana, encontrei o Pool Party Hostel, onde não tardei a sentir-me parte de uma família. Kanha é agora o nome que, aqui, mais gosto.
Todas as Kanhas que conheço partilham um imenso sorriso e uma vontade insaciável de fazer mais e melhor. Na recepção do hostel, cujas paredes transpiram palavras, Kanha, de 29 anos, está a ensinar-me Khmer – palavras como pepino e café com gelo – enquanto, nos momentos mais calmos, praticamos Inglês em jeito teatral. Fechou-se a janela da escola de costura, abriu-se a porta para um espaço onde todos os dias são diferentes.
Espero-te bem, S., e feliz. Sei que, por aqui, são muitos os que sentem saudades dessa tua energia contagiante.
Um Até Já, com Saudade.
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