Share the post "Postais do Camboja: a certeza de que Siem Reap é cidade-casa"
Querida K.,
Foste a primeira pessoa a quem escrevi de solo Khmer. Com quem partilhei as primeiras impressões deste lugar a que chamei casa durante nove meses. És, também, a pessoa a que envio o meu último postal, escrito já no abrigo do ninho.
Em alguns lugares, ilogicamente, a força da gravidade parece funcionar de forma diferente. Parece ser maior. Alguns lugares parecem conseguir arrancar do peito o coração e plantá-lo no chão, na terra, quem sabe para o fazer florir como não acontece noutros recantos do Mundo. Siem Reap é, para mim, um desses lugares. Uma cidade com uma aura que, envolta no caos do quotidiano, sabe elevar a Alma, levando-a a perder-se, feliz, por entre ruelas estreitas, campos de arroz imensos e templos centenários onde a Natureza decidiu, há muito, repousar os seus troncos.
Siem Reap é, hoje, cidade-casa, onde sei que, a cada regresso, terei abraços à espera, memórias a espreitarem em cada esquina. Há poucas coisas mais bonitas no Mundo que esta sensação de pertença que se eterniza nos confins de mim. Sei que não sou a única a ser povoada por estas imensas raízes. Conheci, em nove meses, seres extraordinários que, sem esquecer o coração que ali ficou plantado, voltaram a Siem Reap em busca de plenitude.
Cruzei caminho com a Ineke na última Feira Ecológica em que participei. Ligeiramente atrasada, cheguei com uma pequena mesa debaixo do braço e um cesto repleto de elásticos para o cabelo feitos, com ternura, pelas minhas alunas. Escolhi um sítio à sombra e lá criei o espaço da Rachna Satrei. Ao meu lado, havia já um cantinho com brinquedos coloridos variados. Em pé, estava Ineke, Holandesa de sorriso reconfortante. Não tardou a que nos puséssemos a falar sobre o seu projecto – Panha Sabay.
Ineke visitara o Camboja pela primeira vez em 2005, como turista, e, desde então, não conseguira desligar-se do país. “Fiquei apenas quatro ou cinco dias mas a verdade é que me apaixonei imediatamente. Lembro-me de estar no autocarro e pedir ao motorista para parar assim que atravessámos a fronteira para o Camboja e vi uns campos de arroz verdejantes, com árvores altas e lagos. Eu só queria inspirar aquele ar para poder sentir que estava realmente ali”. Sabia que teria de regressar, contou-me. E assim foi. Voltou a pisar solo Khmer em 2008, ano em que começou a procurar formas de viver o país enquanto mais do que turista.
Em 2009, regressou para um voluntariado de quatro semanas numa escola fora da cidade onde ensinava jovens adultos que, por sua vez, partilhavam o conhecimento com as crianças das aldeias de onde vinham. De volta à Holanda, tentou reajustar-se à rotina mas não tardou a perceber que precisava de partir de novo, agora por mais tempo. Despediu-se do seu trabalho enquanto Quality Manager e fez-se a Siem Reap, integrando, como voluntária, um projecto de construção de uma escola. Ali ficou dois anos e três meses. Nesse lugar onde diz que as pessoas são genuinamente simpáticas. Onde a história antiga se encontra a escassos passos de casa. Onde as paisagens verdejantes deixam qualquer um sem respiração.
Foi durante esse tempo que começou a germinar a ideia de criar o seu próprio projecto. Ao ver que as crianças tinham dificuldade em aprender Khmer – a sua própria língua -, Ineke pensou ser necessário levar a aprendizagem até casa, de forma diferente e divertida. Teve, pois, a ideia de criar brinquedos educativos com materiais simples e reciclados. Deste despertar nasceu a Panha Sabay.
Agora, depois de vender tudo na Holanda e de se mudar para uma casa plena de luz numa pequena rua de Siem Reap, Ineke sente-se feliz. “Agora, acordo e penso: sim, estou pronta para mais um dia”. Pergunto-lhe se foi uma decisão difícil de tomar. Diz-me que não. Parafraseando Rui Veloso, talvez sem querer, confessou não poder ser de outra maneira. Tinha um sonho, decidiu abraçá-lo. “Nada é definitivo”, acrescenta, “pode-se sempre regressar”. Porém, é melhor tentar e falhar do que viver embrulhada numa coberta de ‘e ses’.
Vichika tem uma história diferente. Com pais nascidos e criados em Siem Reap que partiram, depois, para a Austrália, cresceu com a certeza de que teria de visitar o país das suas raízes. Aos 18 anos, aterrou, pela primeira vez, no Camboja e confessa quase ter ficado sem palavras. “Era tanta a diferença. Lembro-me de estar sentada em frente à casa do meu tio, em Phnom Penh, a observar o ambiente. Eram tantas as motas, as bicicletas, os pedintes, o pó. Mas soube ter de regressar”. Hoje, com 35 anos, vive em Siem Reap, onde dá aulas numa escola internacional. “No Camboja, a vida é mais relaxada. As pessoas dão valor à família, vivem sem pressa. Em Melbourne, tudo gira à volta do trabalho”, conta. Dá um gole no seu copo de água gelada e acrescenta: “aqui, sou verdadeiramente feliz”.
Mais do que no telemóvel ou na máquina fotográfica, gravei estas conversas e as caras de Ineke e Vichika no coração. Duas pessoas que, como eu, se apaixonaram por este país encaixado no Sudeste Asiático e não se limitaram a regressar ao quotidiano com o saudosismo luso que eu carrego aos ombros. Duas pessoas que cortaram amarras e disseram sim aos seus sonhos. Hoje, sei que hei-de regressar. Talvez como turista, para um passeio feliz pelas ruas da memória, talvez com uma ideia para tornar palpável em território Khmer. Sei-o e esse saber traz-me paz. Traz paz ao regresso a casa.
Não estava errada quando, no primeiro postal, escrevi o quão, naquele canto do planeta, todas as nossas noções se alteram e como meros acasos se transformam em verdades tão bonitas. Escrevo-te feliz. Certa de que, afinal, este é só mais um Até Já.
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