Querida K.,
És a primeira pessoa a que escrevo de solo Khmer. Começo por dizer-te que as tuas palavras nada deixaram a desejar: Siem Reap é tudo o que disseste ser e mais. Apaixonei-me no instante em que deixei para trás o aeroporto, com o coração e o visto de um mês nas mãos.
Vivo não muito longe do centro. Lembras-te de me teres falado no Old Market? O meu apartamento fica a 30 minutos a pé desse imenso mundo de roupas, aromas e sabores. Quinta-feira fui de mochila às costas pelas ruas da cidade respirar todos os cheiros que por aqui pairam, escutar todos os sons, sobreviver às travessias de estrada onde as passadeiras são poucas e nada contam para motas e tuk-tuks. Fui ao mercado munir-me de frutos secos e parei numa pequena banca de uma rua sem saída para provar o “Khmer Coffee”, doce e diferente de qualquer café que já tenha provado.
Estou estranhamente bem. Sabes o quão tenho tendência para começos atribulados mas, desta vez, esta, que parece ser a minha maior aventura até agora, está a ter um arranque suave. Estranhamente suave.
Estou deitada junto à piscina do apartamento a que posso começar a chamar casa e estou em paz. O som da água a correr em tudo contrasta com os sons lá fora. Com o burburinho citadino do trânsito e das pessoas. É um bom lugar para reflectir e escrever. É um santuário.
Sim, eu sei: vivo numa redoma, num sítio que em tudo contraria o espírito local ou de backpacker mas, por alguma razão, foi aqui que vim parar e não há muito a fazer quanto a isso. Sei, apenas, que não me posso esquecer de que o verdadeiro Camboja está para lá da minha janela: está nas pessoas de sorriso imenso e rostos suados; nas bancas que vendem batidos exóticos; nas poças que a chuva de Outubro teima em alimentar; nos postes de electricidade com cabos sem fim.
Gostava que estivesses aqui, confesso. Sei que não existe melhor companhia que a tua para explorar o não explorado. Deixaria, feliz, que me levasses a conhecer a Pub Street de que me falaste. A rua onde se concentram todos os bares de Siem Reap e onde os idiomas que se escutam fazem crer que se trata de um lugar-Mundo.
Foi lá que, num sítio onde as palavras de Kerouac estão penduradas nas paredes, conheci um grupo de estrangeiros que, tal como eu, viram em Siem Reap a chance feliz de deixar um pouco de si com quem por cá vive. Um grupo de voluntários que está a viver a cidade na sua expressão mais pura, mais verdadeira. Sim, já mergulhei no mundo do voluntariado outra vez. Encontrei uma escola onde são precisos professores de Inglês e abracei uma turma de trinta pequenos cuja energia é tudo menos proporcional ao seu tamanho. É um desafio imenso, não nego, mas que enche o coração e abre por completo a tal janela para o mundo real.
No primeiro domingo na cidade, resolvi ir ao circo. Aconselharam-mo e, depois de ler mais sobre o conceito, decidi que valia a pena experimentar. As minhas memórias deste tipo de espectáculos não são particularmente felizes, talvez por não gostar muito de palhaços (tal como tu), mas o Phare Circus veio virar o meu baú de pernas para o ar.
De repente, o circo transformou-se em algo extraordinariamente único e bonito no meu imaginário. Os artistas, de contextos complicados, formaram-se na Phare Ponleu Selpak, uma escola em Battambang criada por nove jovens que, depois da queda do Khmer Rouge, deixaram o campo de refugiados onde se encontravam com a certeza de que a arte é transformativa e terapêutica. Não te sei descrever o quão apaixonante foi vê-los em palco sob o tema, adivinha, “same same but different”. Sorri do princípio ao fim e regressei a casa com a sensação aconchegante de ter presenciado algo maior. Mais verdadeiro.
Começo a perceber, cada vez melhor, todas as histórias que me foste contando sobre os teus devaneios pelo Sudeste Asiático. O quão aqui todas as nossas noções se alteram e como meros acasos se transformam em verdades tão bonitas.
Espero que estejas feliz, com os cachecóis e as botas de Outono, e que recebas este postal com a certeza de que, se não fosses tu a fazer crescer esta minha imensa sede de Mundo, ele não chegaria do Camboja.
Um até já, de Porto ao pescoço.
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