Share the post "Já bebeu o Vinho dos Mortos? Uma tradição ressuscitada em Boticas"
Haverá vinhos cuja qualidade é, por si só, capaz de ressuscitar um falecido. Outros haverá que ninguém os bebe, nem morto. Mas quando a conversa chega ao já famoso Vinho dos Mortos, no concelho de Boticas, aí a coisa muda de figura.
Desenterrado e aberto, tornou-se uma especialidade vínica muito apreciada. Mas como diabo se chegou até este néctar?
Tudo começa com aquele velho adágio popular onde se jura a pés juntos de que a necessidade aguça o engenho.
E foi o que fizeram as gentes de Boticas, que vendo aproximar-se as temidas invasões francesas, em 1808, esconderam o vinho, enterrando-o no chão das adegas, debaixo de pipas e lagares. Começava assim a criar-se a lenda do Vinho dos Mortos.
vinho dos mortos: engenho contra os franceses
As invasões francesas ordenadas por Napoleão Bonaparte visavam a imposição de um bloqueio continental a toda a Europa, resultado não só da política expansionista dos gauleses, mas também do desejo destes em pôr cobro ao poderio económico e militar dos britânicos.
Como Portugal não se submeteu a esse bloqueio, Napoleão ordenou três invasões ao nosso país, acabando as três tentativas derrotadas.
Como é óbvio, mesmo saindo vitoriosos, os portugueses penaram sobre a violência exercida pelos exércitos franceses, motivando desastres como, por exemplo, o da Ponte das Barcas, no rio Douro.
Construída sobre barcaças, esta ponte ligava o Porto a Vila Nova de Gaia, constituindo a única travessia do rio na região. O aproximar das tropas da segunda invasão francesa, comandadas pelo marechal francês Soult, gerou um movimento de pânico entre os habitantes, que empreenderam a fuga rumo ao rio Douro, tentando atravessar na Ponte das Barcas.
Sob o peso da população, a travessia, assente em vinte barcaças, acabaria por ceder, estimando-se que tenham morrido, a 29 de Março de 1809, cerca de quatro mil pessoas.
Entrada a norte
O que é que o desastre da Ponte das Barcas tem a ver com o Vinho dos Mortos, poderá perguntar-se. Bem, foi precisamente durante a segunda invasão francesa que o engenho das populações lhe permitiu salvar o precioso néctar.
Depois de tentar entrar em Portugal pela região do Minho, intenção prontamente repelida pelas forças portuguesas, o marechal Soult decide marchar rumo a Ourense, seguindo daí na direção de Chaves, através do vale do rio Tâmega. Depois de reunirem todas as suas forças na cidade espanhola, os franceses apontaram a Portugal.
O governador militar de Trás-os-Montes, compreendendo a inutilidade de fazer ali frente ao invasor, tal era a desproporção de armas, retirou para uma zona a sul de Chaves. Soult fez então de Chaves a sua base para as operações que iria levar em cabo em solo português.
E é aqui começam a criar-se as condições ideais para uma fantástica história como a do Vinho dos Mortos.
Por onde passavam, os soldados franceses não perdoavam a ninguém, cometendo inúmeras atrocidades junto da população e entretendo-se ainda a pilhar tudo a que podiam deitar a mão.
Vai daí, que a população de Boticas decidiu que tinha que guardar o que havia de mais valioso, neste caso o vinho. Escondido sob uma espessa camada de saibro, o vinho passou despercebido aos tumultuosos soldados de Napoleão e ali repousou durante muito tempo.
Com os franceses corridos de Portugal, foi tempo das populações recuperarem os bens que tinham deixado para trás. Desenterraram o vinho, julgando-o então estragado, após tanta peripécia. Puro engano.
Vinho saboroso
Quando abriram as garrafas repararam que tinha adquirido novas propriedades, apresentando-se muito saboroso.
Segundo o Repositório Histórico do Vinho dos Mortos, situado em Boticas, e onde se conta toda a história, tornou-se um vinho com uma graduação entre 10 e 11 graus e com algum gás natural, resultado de uma fermentação no escuro e a uma temperatura constante.
Foi assim que nasceu a tradição de enterrar o vinho, para otimizar a sua qualidade. Não é um vinho abundante, mas tem um sabor agradável, devendo ser servido à temperatura de 14º.
O Vinho dos Mortos acabou por se transformar num ex-libris de Boticas, e também da região flaviense. Merece uma visita e por ali pelos arredores também há muito que ver. Uma sugestão para um belo fim de semana transmontano.